Foto: Paulo Alexandre/Argus Filmes

O cineasta brasileiro Chico Carneiro saiu do Brasil, mais precisamente da região amazônica, atravessou o oceano e foi parar em Moçambique, não apenas fazendo filmes, mas vivendo cinema. 

Seu pai, Duca Carneiro era um exibidor cinematográfico. Autodidata, Chico ganhou sua primeira câmera ainda criança, uma Bolex de 8mm que usava para fazer pequenos filmes  caseiros em preto e branco. Em 1971, entrou para o curso de cinema em Belém. Se no começo seu fascínio pelo ato de fazer filmes começava e terminava com a realização em si, aos poucos ele foi vendo na arte uma forma de promover mudanças sociais. 

Nos anos 70 Chico participou de obras importantes do cinema brasileiro, começando por  “Iracema”, de Jorge Bodanzky Orlando Senna, filmado no Pará, em 1974. Participou ainda dos longa-metragens “Gitirana” (Bodanzky-Senna, 1975); “Os Muckers” (Bodanzky-Gauer, 1977); “Pixote” (Hector Babenco, 1979); “Música Para Siempre” (Nevile D’Almeida, 1979) e “ABC da Greve” (Leon Hirzsman. 1979).

Em 1993, uma década após chegar em terras moçambicanas, ele se tornou sócio-fundador da Promarte, uma empresa produtora de filmes. Lá, exerceu as funções de fotógrafo, operador de câmera e realizador. Em 2012,  criou a produtora Argus, onde trabalha atualmente. Hoje, ele se divide entre fazer filmes sobre a Amazônia e a realidade moçambicana. 

Em entrevista à ATLANTICO, ele fala sobre a paixão pela sétima arte, que veio desde a infância, incentivada pelo pai, passando por sua participação em importantes obras cinematográficas brasileiras dos anos 70, até sua chegada em Moçambique, que deveria durar um ano mas já chega a mais de três décadas. 

Foto: Paulo Alexandre/Argus Filmes

Nessa entrevista, Chico Carneiro também relembra grandes momentos de sua história de amor com o sétima arte. Assim como o caminho que o levou a adotar Moçambique como sua casa. 

ATLANTICO – Como começou sua paixão pelo cinema?

CHICO CARNEIRO – Nasci e cresci em um ambiente cinematográfico. Meu pai era exibidor de cinema em Castanhal, uma pequena cidade no interior (distante 70 kms da capital do Pará, Belém), e em outras cidades do interior do Pará. Em sua fase áurea, ele chegou a ter uma rede de exibição de 25 cinemas, estendendo-se até a Imperatriz, no Maranhão. Eu vivenciava Cinema. Grande parte da minha formação cultural deve-se ao cinema. Desde adolescente o fascínio pelo cinema fez com que eu já soubesse o que queria ser (e fazer) profissionalmente na vida: filmes! Éramos 10 irmãos ligados ao cinema, e cedo tivemos acesso a câmera de filmar através do nosso pai que, embora exibidor, era entusiasta do cinema em geral. Ele também tinha conhecimentos de fotografia. Foi numa câmera Bolex de 8mm que me iniciei no desbravamento da então complexa arte de filmar. Década de 1960. Se inicialmente era o fascínio do “fazer cinema” que me empurrava para essa área do audiovisual, logo o meu caminhar cinematográfico enveredou pela trilha de querer fazer um cinema de cunho mais social, e político. Isso deveu-se não somente ao tipo de cinema no qual eu estive envolvido mais tarde profissionalmente e, sobretudo, pela minha visão social do mundo. 

Foto: Argus Filmes

ATLANTICO – E como se deu sua profissionalização? 

CHICO CARNEIRO – Comecei filmando, ainda na bitola 8mm, pequenos filmes em preto&branco sobre temas caseiros, como aniversários e o desfile escolar do 7 de setembro em minha cidade natal. Mas para estabelecer um marco inicial da minha carreira, pode-se utilizar o ano de 1971, quando fiz um curso de cinema em Belém, que culminou com a produção de um pequeno filme em 16mm (inacabado, por falta de recursos).

Meu primeiro trabalho profissional foi como assistente de câmera no filme de longa metragem “Iracema” – de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, filmado no Pará, em Outubro de 1974. Trabalhar nesse filme foi uma verdadeira faculdade de cinema. Entre outras coisas, o modus operandi de como o filme foi feito era precisamente o tipo de cinema que me interessava fazer: um cinema de forte cunho social e documental, de baixo custo, com equipe reduzida, ágil, comprometido com sua contemporaneidade e com a denúncia das mazelas que as ditaduras impõem ao tecido social de uma sociedade, no caso a brasileira e amazônica.

A partir desse trabalho, em Junho de 1975 migrei para São Paulo onde durante cerca de 8 anos trabalhei na indústria do cinema como assistente de câmera e de som, aprendendo a fazer, fazendo. Entre filmes publicitários, documentários e longas metragem fui exercitando o meu aprendizado prático do fazer cinema. Entre 1981 e 1982 co-produzi e co-realizei o que considero o meu primeiro documentário paraense, “Tó Teixeira”. Filmado a cores e em 16 mm, fiz a fotografia e a câmera.  No início de 1983, recebi um convite para ir trabalhar em uma empresa produtora de filmes em Moçambique. 

Foto: Acervo Chico Carneiro

ATLANTICO – De que forma se deu sua chegada em Moçambique?

CHICO CARNEIRO – Até então o meu conhecimento sobre esse país era praticamente nenhum: sabia do processo de independência via luta armada, sabia do filme do Zé Celso e Celso Lucas sobre Moçambique (“25”), assim como do filme do Ruy Guerra “Mueda – Memória e Massacre”. Também sabia de um livro intitulado “Moçambique – Primeiras Machambas”. Mas parava aí o meu conhecimento sobre esse país do índico.

Esse convite abria um leque de oportunidades para o desenvolvimento de minha carreira profissional. Deixar de ser assistente e passar a ser o operador de câmera e diretor de fotografia da empresa. A empresa moçambicana era muito bem montada e possuia equipamentos e infra-estrutura invejáveis, até para países como o Brasil que, nessa altura, já possuía uma considerável indústria de cinema. Nessa altura, Moçambique possuía laboratório próprio para a revelação de filmes em preto e branco, de modo que a produção da imagem em movimento no país era toda feita em preto e branco. Filmava-se em 16mm e ampliava-se para 35mm, para exibição nas salas de cinema. Conhecer um país africano. Participar de um processo revolucionário em um país recém liberto e contribuir para a solidificação desse processo. Sair da ditadura que então ainda se vivia no Brasil. Ter uma estabilidade financeira, por pequena que fosse, uma vez que estava casado e com 2 filhos pequenos. O contrato inicial era de um ano, renovável. Não fazia idéia que esse um ano se tornaria com o passar do tempo nos 36 anos que, neste 2019, já completei vivendo aqui em Moçambique.

ATLANTICO – Quais as similaridades e diferenças entre Moçambique e Brasil?

CHICO CARNEIRO – Essa pergunta parece simples, mas não é. Como é que se pode comparar países, culturas? Não se pode. Ou melhor, não se deve. Minha longa vivência e imersão na cultura deste país tem me ensinado a não fazer esse tipo de comparação. Mas nestes tempos de neoliberalismo, muitos países se igualam pelo o que há de pior na espécie humana. Utilizar os recursos minerais do país que pertencem a todos os seus habitantes, por exemplo, para o enriquecimento de uma ínfima parcela da população, em detrimento da grande maioria do restante dessa mesma população, não era exatamente o que embalava os sonhos de grande parte de jovens que fizeram a luta armada de libertação de Moçambique.

“Como é que se pode comparar países, culturas? Não se pode. Ou melhor, não se deve”.

ATLANTICO – Você fez vários trabalhos no Brasil, especialmente na Amazônia. Qual sua ligação atualmente com o país? Pretende continuar fazendo filmes por aqui?

CHICO CARNEIRO – Minha ligação com o Brasil nunca deixou de existir. Praticamente vou uma vez por ano ao Pará e, na medida do possível, transformo o tempo passado lá em um filme documentário. Em 2018, por exemplo, fiquei três meses no Brasil e nesse período filmei material para cinco documentários, 2 deles já prontos e exibidos em Maputo [“Quem é Vanda?” e “Jaburu”], e outros três em fase de edição. Neste momento, contando com o inacabado filme de 1982 e os dois recentes que estão em edição, já são 14 filmes-documentários feitos na Amazônia Paraense.

Filme documentário “8 Dias em Massingir (animais não votam)”, produzido pela ARGUS, para o CTV – Centro Terra Viva, realizado por Chico Carneiro Foto: Argus Filmes

ATLANTICO – O que o atrai a fazer cinema em Moçambique?

CHICO CARNEIRO – Riqueza de histórias. Como na Amazônia. Tudo vira filme. 

ATLANTICO – Como é o intercâmbio com realizadores de outros países? Costumam trabalhar também com realizadores africanos?

Equipe documentário “Djambo” Foto: Argus Filmes

CHICO CARNEIRO – Moçambique tem um forte histórico de produções de filme, alicerçado pela implantação do Instituto Nacional de Cinema, logo após a independência do país, e que objetivava também a formação dos cineastas locais. Grandes nomes da cinematografia mundial estiveram por aqui dando seu contributo para a construção de uma cinematográfica moçambicana. Cito os 3 mais conhecidos: Ruy Guerra, Jean Rouch e Jean Luc Godard. Mas cineastas de outros países também por aqui passaram: soviéticos, cubanos, ingleses, zimbabweanos, portugueses, brasileiros… Esse intercâmbio já foi mais intenso e duradouro. Hoje, cada caso é um caso. Eu já co-realizei filmes com portugueses e moçambicanos. Fotografei um documentário para uma portuguesa radicada em Moçambique e, recentemente, filmei entrevistas para um documentário de uma cineasta cabo verdiana aqui em Maputo, sobre a diáspora cabo verdiana em Moçambique. Fiz a cinematografia de 2 documentários para 2 realizadores europeus, um francês e um dinamarquês. Excetuando essa colaboração com a cineasta cabo verdiana, ainda não tive a oportunidade de trabalhar com ou para outros realizadores africanos.

ATLANTICO – Você fez vários trabalhos com grande foco político ao mostrar a realidade moçambicana. Também trabalhou com ONGs. Isso, sem contar o seu foco na Amazônia. Como você enxerga o papel do cinema na transformação da realidade social de um país?

CHICO CARNEIRO – Bernard Shaw definia o cinema como uma arte rara e valiosa de ser esplendidamente natural na interpretação da vida humana. Eu acrescentaria rara, valiosa, poderosa e transformadora. Tão poderosa que filmes são temidos e censurados e cerceados sua livre produção e divulgação por todos os sistemas ditatoriais. Aos dominadores, não interessa que as populações tenham acesso à informação, à educação. O cinema informa, educa e liberta. Acho também que o cinema deveria ser matéria de ensino curricular nas escolas. 

“Aos dominadores, não interessa que as populações tenham acesso à informação, à educação. O cinema informa, educa e liberta”. 

ATLANTICO – Quais seus planos para o futuro? E quais os próximos passos para a Argus?

Filme documentário “Pescadores de Água Doce” Foto: Chico Carneiro

CHICO CARNEIRO – Neste ano de 2019, eu concorri a três projetos de documentários aqui em Moçambique e ganhei um deles, que transformou-se no filme “Minha casa Era Aqui”, com a temática do reassentamento urbano. Foi a mais recente produção da Argus, além da produção local dos dois documentários para a Mira Filmes.  Meu plano é continuar fazendo filmes de temática social. Em Moçambique e no Brasil, mais precisamente na Amazônia Paraense. Pretendo também finalizar o documentário sobre o músico “Tó Teixeira”. Em Fevereiro de 2020 irei ao Brasil para lançar dois dos documentários feitos em 2018 (“Quem é Vanda?” e “Jaburu”) e complementar as filmagens para outros dois. Também quero disponibilizar meus filmes amazônicos na Internet.

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