A vida do ex-presidente timorense José Ramos-Horta mudou pouca coisa depois de ter sido laureado em 1996 com o Prêmio Nobel da Paz junto com o seu compatriota Carlos Filipe Ximenes Belo. Se até então, ele era porta-voz da resistência do Timor-Leste durante a ocupação indonésia, depois disso participou ativamente não só da reconstrução democrática do seu país como também vem promovendo a paz mundo afora denunciado violações aos direitos humanos.

Nascido em 1949 de mãe timorense e de pai português, Ramos-Horta é uma peça-chave para a consolidação da democracia no Timor-Leste, país que experimentou décadas de ocupação militar portuguesa e, após a independência, foi ocupado brutalmente pela Indonésia. Ramos-Horta fez duras críticas aos governo militar português e também denunciou ao mundo a ocupação indonésia. O preço disso foi o exílio. Aos 18 anos, precisou viver um ano em Moçambique. Aos 25, teve que deixar o Timor–Leste. A partir de então, viveu como expatriado nos vinte e quatro anos seguintes.

Neste período, tornou-se pessoa mais jovem a discursar nas Nações Unidas e convenceu representantes da ONU a aprovar uma resolução apoiando a independência de Timor–Leste. Apesar da vitória, a ocupação pela Indonésia continuou e por isso ele persistiu para que os líderes mundiais convencessem a Indonésia a conceder a liberdade ao Timor–Leste, fato ocorrido em 2002. Em 2006, Ramos-Horta foi nomeado Primeiro–Ministro e depois excerceu o cargo de presidente do país entre 2007 e 2012.

A conversa com José Ramos-Horta acontece em um momento especial. O ex-presidente passa a integrar o Conselho Consultivo do Instituto Brasil África, responsável pela revista ATLANTICO. O conselho da entidade conta com profissionais de destaque em várias áreas de atuação e que vêm de diversos países do globo. A entrada dele fortalece o trabalho da instituição, criada em 2013, para aproximar o Brasil dos países do continente africano. Além disso, neste momento, Ramos-Horta preside um painel para as Operações de Paz da ONU e integra um conselho para evitar conflitos na Ásia. Ele também atua no continente africano, mais especificamente na Guiné-Bissau e na Guiné Equatorial.

Para a ATLANTICO, ele fala sobre a experiência na África, sobre o papel dos Brics para as economias do continente africano, sobre paz e também sobre futuro. O dele e o do mundo.

“Em apenas 12 anos  fizemos muitos progressos  no Timor Leste, mais e melhor que muitos países”

ATLANTICO – Entre janeiro de 2013 a junho de 2014, o senhor exerceu o cargo de representante do secretário-geral das Nações Unidas em Guiné-Bissau. Quais eram suas expectativas antes de chegar ao País?

JOSÉ RAMOS-HORTA – O quadro político e social na Guiné-Bissau que persistia em Fevereiro de 2013, como observei ou como me foi relatado podia resumir-se assim: grande fragilidade do Estado, extrema pobreza – com indicadores sociais muito baixos, instabilidade política persistente, muitas fragilidades e fissuras no Exército e intervenção frequente de militares na vida política nacional, penetração dos cartéis de droga sul-americanos na Guiné-Bissau e em muitos outros países da região exacerbando as dificuldades naqueles países e criando novos focos de crime, tensões e ameaças.

ATLANTICO – A Guiné-Bissau viveu muito tempo uma situação de insurgência. Quais foram as dificuldades encontradas no processo de pacificação do país?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Os grandes obstáculos à normalidade constitucional, a uma estabilidade política duradoura e ao desenvolvimento econômico, aconteciam graças a uma elite política muito dividida, numa proliferação de partidos políticos e numa chefia militar que, evoltada pela má governança e querelas partidárias, ou manipulada por interesses políticos. Foi necessário muito diálogo com todos, provocar diálogo entre os guineenses, alimentar a cultura do diálogo. A atual liderança política dos dois grandes partidos, o PAIGC e o Partido de Renovação Social, foram determinantes para a normalização constitucional. Estes dois partidos, divididos internamente e entre eles, souberam fazer esforços notáveis e passaram a cooperar para o bem comum.

“É necessário ouvir, ouvir e ouvir os marginalizados,  os pobres, jovens e mulheres”

ATLANTICO – Qual o papel dos BRICS para as economias emergentes do continente africano?

JOSÉ RAMOS-HORTA – As economias africanas têm crescido muito nestes últimos trinta anos. As grandes cidades são irreconhecíveis quando comparadas com 30 anos atrás. O movimento nos seus portos e aeroportos, e nas suas ruas e avenidas modernas, nas autoestradas é revelador de um continente finalmente em marcha. Os investimentos de capital africano nas economias africanas aumentaram muito. Há hoje muito mais investimento africano na África. Capital nigeriano, angolano e sul-africano já é investido em outros países africanos. Produtos industriais africanos já circulam nos mercados africanos. Os investimentos chineses,via empréstimos a juros bonificados ou a juros comerciais e via grants têm contribuído para a melhoria das infraestruturas, estradas, pontes, portos, aeroportos, barragens, hospitais, etc. Os outros Brics não têm tanta expressão. A Índia e a Rússia sempre tiveram uma presença significativa na África mas não se compara com a presença chinesa atual. O peso econômico do Brasil na África não é significativo e continua modesto. Pode aumentar, pois o Brasil tem recursos financeiros, know-how e tecnologia que podem rivalizar com qualquer país do hemisfério norte ou com a China. A presença diplomática brasileira na África é muito grande e antiga. Aliás, o Brasil foi único país da América Latina a abrir embaixadas em muitas capitais africanas, mais de 30 anos antes de outros países como a Argentina, Chile ou a Turquia “descobrirem” a África.

ATLANTICO – Em 2050, a população africana deve atingir a marca de 2 bilhões. A maioria dessa população será jovem. A partir deste dado, quais são hoje os principais desafios das nações e da comunidade internacional para garantir o empoderamento dessa população jovem?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Educação, educação, educação! Saúde, saúde, saúde! A África e seus parceiros devem investir muito mais nestes dois setores vitais para o presente e o seu futuro. Claro, devem investir muito mais também no desenvolvimento rural para assegurar total segurança alimentar. Isto se aplica também à Ásia, que tem hoje 4 bilhões de pessoas.

ATLANTICO – Que aspectos o senhor aponta como positivos no processo de desenvolvimento africano? E que desafios ainda estão longe da superação?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Os aspectos positivos estão já apontados na resposta à sua primeira pergunta. Os negativos são muitos ainda: má governança, corrupção, instabilidade política em muitos países, conflitos étnicos e religiosos. Os irmãos africanos têm que cuidar muito mais das suas florestas, rios, lagos e mares, pois todas estas riquezas estão a sofrer desgaste natural pela pressão demográfica e pela devastação causada pela industrialização e comercialização sem planeamento adequado e sem compensação à Natureza.

ATLANTICO – De que forma a comunidade internacional tem olhado para a África?

JOSÉ RAMOS-HORTA– Durante séculos a África foi vítima de predadores, sobretudo europeus que escravizaram, colonizaram, saquear e impuseram fronteiras arbitrárias como se estivessem a tratar de suas propriedades de gado ou agrícola. A África estava ao serviço da Europa, para as suas economias e para as suas guerras. Olhando para as populações negras das Américas, do Norte ao Sul, podemos ver nos seus rostos o filme da história, com o drama, a vergonha da civilização cristã europeia, que inventou a escravatura e a colonização. E os descendentes dos escravos, no Brasil, e em outros países da América Latina e nos EUA, ainda não conseguiram vencer as barreiras sociais. Ainda há muita exclusão dos negros como dos índios. O Reino Unido e a França continuam a serem os dois países com mais forte interesse na África e em particular o Reino Unido tem feito muito para ajudar os países africanos a melhorar a governabilidade e as suas economias. O Reino Unido é o único país do grupo G8 que destaca 0,7% do seu PIB para a ajuda externa. E isto foi feito pelo governo conservador de David Cameron e em momento de crise financeira. Todos os outros países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) reduziram drasticamente o volume de ajuda ao desenvolvimento. Exceção também à União Europeia que devemos destacar, sob a presidência de José Manuel Durão Barroso, que sempre esteve na linha de frente em apoio à boa governança e ao desenvolvimento dos países pobres, sobretudo, da África.

ATLANTICO – Como o senhor avalia a competitividade das empresas e instituições africanas no mercado internacional?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Ainda muito frágil. A África poderia ser o celeiro mundial, fornecendo comida para todo o mundo. Por exemplo, só o Brasil produz mais alimentação, produção agrícola, que toda a África. Mas para que a África possa competir mais no

mercado internacional tem que melhorar a educação, saúde, boa governança, infraestruturas, etc. Tem que melhorar suas instituições democráticas, a Justiça, estabilidade política, previsibilidade e alguma continuidade. Creio que precisariam de mais 30 anos para alcançar esses objetivos.

ATLANTICO – Durante os períodos de exílio, o senhor desenvolveu uma forte campanha de denúncia das atrocidades cometidas pelos invasores, que deixam mais de 100 mil mortos. Quais foram os desafios para conseguir apoiadores para sua causa?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Interesses econômicos e estratégicos da Guerra Fria prevaleciam sobre direitos humanos. E naquela época não havia mídia digital como temos hoje a qual poderíamos recorrer para romper o silêncio das mídias tradicionais em que estavam em conluio com as grandes potências.

ATLANTICO – O senhor esteve 24 anos fora de seu país. Que sentimentos vieram em sua cabeça durante esse período?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Acreditando sempre, nunca desistindo, todo dia, cada dia, eu fazia algo para divulgar o sofrimento do povo, ganhar simpatia mundial, sempre acreditando que algum dia a justiça seria feita. E assim aconteceu em 1999. Foram 24 anos de esperança, de fé, de luta!

ATLANTICO – Como um jovem adulto, o senhor passou a lutar por uma causa. Que lições o senhor daria para os jovens do mundo que de alguma forma reivindicam melhorias para seus países?

JOSÉ RAMOS-HORTA– Nunca desistir dos sonhos, das nossas ambições, nunca desanimar. E perante a violência dos grandes e dos extremistas não ceder à violência e ao ódio, pois o ódio nos corrói, corrói os nossos próprios valores e ficamos como aqueles que nos oprimem. Os extremistas, déspotas, são sempre derrotados, pois as suas ideologias e práticas não têm receptividade popular. Mais cedo ou mais tarde as ideologias extremistas são desacreditadas e derrotadas.

ATLANTICO – Como o senhor avalia o panorama da questão dos direitos humanos hoje no mundo?

JOSÉ RAMOS-HORTA – A situação global dos direitos humanos está muito melhor do que há 30 anos. Há uma maior sensibilização, um maior compromisso da comunidade internacional em punir os violadores de direitos humanos, uma maior capacidade de intervenção para prevenir e punir o genocídio. Mas também ainda persistem situações muito graves – em Myanmar, perseguição e violência contra as minorias étnicas muçulmanas, na Palestina, onde milhões de palestinos continuam oprimidos, sancionados, negados o direito a um Estado. Ainda há muita violência e discriminação contra mulheres, sobretudo, na África e Ásia. Mas globalmente, o mundo está melhor e as mulheres cada vez mais se afirmam, ocupam posições de liderança nos setores privado, público e acadêmicos.

ATLANTICO – Que aspectos são levados em conta em um processo de pacificação?

JOSÉ RAMOS-HORTA – É necessário ouvir, ouvir e ouvir os marginalizados, os pobres, jovens e mulheres. Necessário o diálogo e diálogo não significa aqueles que detêm o poder falarem e falarem para os outros. Diálogo significa ouvir aqueles que não têm voz.  É Necessário também a coragem de todos os lados para soluções de compromisso, concessões de parte a parte.

ATLANTICO – As redes digitais têm sido amplamente usadas para denunciar violações de direitos humanos e consequentemente têm sido alvo dos governos no intuito de controlá-las. Quais as perspectivas do senhor em relação a este mundo cada vez mais conectado, onde o ciberativismo é uma realidade?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Missão impossível para qualquer regime tentar controlar o fluxo da informação. Mesmo a Coreia do Norte não consegue controlar em 100% as informações provenientes do exterior. O ciberativismo leva a eleger e derrubar governos e retira dos governantes o monopólio do poder de decidir. Isso é bom, mas também pode ser muito mau, pois pode ser utilizado e manipulado por interesses não limpos que queiram desestabilizar um governo democrático quando este governo tem políticas econômicas e sociais que não agradam aos grandes e ricos.

ATLANTICO – Qual a situação atual do Timor-Leste após a independência? Onde o país tem avançado e que desafios ainda precisam ser superados?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Em apenas 12 anos fizemos muitos progressos, mais e melhor que muitos países que estão independentes há muitos mais anos. Em 2002, depois de 24 anos de ocupação indonésia, tínhamos 16 médicos timorenses. Desde 2003, o Timor-Leste independente, com a cooperação exemplar cubana, produziu mais de 700 médicos timorenses com outros 400 mais a formarem- se. Em dois ou três anos, proporcionalmente, o Timor-Leste terá mais médicos que qualquer país da Ásia. O Índice de Desenvolvimento Humano do país melhorou muito, situado agora em 122 entre 192 países, melhor que qualquer país africano a exceção da África do Sul e Cabo Verde. A extrema pobreza e a mortalidade infantil, incidências de malária e dengue baixaram muito. Mas ainda persistem muitos problemas de subnutrição infantil e baixo rendimento escolar. Mais de 90% das crianças estão nas escolas, mas a qualidade do ensino é muito deficitária. O nosso sistema judicial é muito frágil apesar do apoio de Portugal, Brasil e Cabo Verde. Mas isso é natural. O sistema judicial necessita de duas a três gerações para se equipar com grandes quadros,bem formados academicamente e com experiência profissional.

ATLANTICO – Como é o trabalho de fortalecimento das instituições democráticas de uma nação?

JOSÉ RAMOS-HORTA – A construção do Estado de Direito exige tempo, duas a três gerações, muita visão e compromisso, paciência e determinação. Não há shortcuts.

ATLANTICO – Qual a influência das religiões nos processos de pacificação mundo afora?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Milhares de pessoas inocentes têm sido sacrificadas no altar das religiões e não é apenas o extremismo islâmico que comete barbaridades. A história do Cristianismo é também uma história de barbaridade cometida em nome de Cristo. Sempre houve líderes religiosos que incitam o ódio e guerras como também tem havido muitos líderes religiosos que muito contribuíram e continuam a contribuir para a paz no mundo. A eles presto homenagem.

ATLANTICO – Ser laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 1996 chegou a te ajudar de que forma na propagação de seus ideais? Qual o significado desse prêmio para o senhor?

JOSÉ RAMOS-HORTA – O Prêmio Nobel dá um fórum, uma plataforma. Mas é preciso saber usar essa plataforma com prudência, equilíbrio, moderação, para termos impacto.

ATLANTICO – Quais são seus próximos projetos?

JOSÉ RAMOS-HORTA – Tenho uma agenda muito cheia. Sou o presidente de um painel independente de alto nível para as Operações de Paz da ONU. Ele faz a avaliação e reflexão sobre melhores mecanismos de prevenção e solução de conflitos, de intervenção mais célere e eficaz da ONU para prevenir genocídio e guerras. E sou vice-presidente do Conselho Asiático para a Paz e Reconciliação, grupo não estatal, de ex-chefes de Estado e Governo da Ásia, que se oferece para ajudar a diminuir tensões e evitar conflitos na Ásia.

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