Bela Gil ganhou relevância social no Brasil ao falar, de forma simples, sobre um assunto até então negligenciado pela maioria: a alimentação consciente e saudável. 

Sempre com bom humor e simpatia, duas características marcantes em sua personalidade, Bela apresenta na televisão receitas que misturam ingredientes comuns, usados no dia-a-dia, como vegetais desconhecidos pela maioria da população.

A partir da notoriedade adquirida em seu programa de televisão, surgiram quatro livros, um canal de sucesso no YouTube – com quase 390 mil inscritos, além de  convites para peças publicitárias e para palestras mundo afora. 

Seu trabalho faz barulho nas redes sociais – que de vez em quando estranham suas receitas – e incomoda governos e empresas. Algo comum para quem fala publicamente de um assunto que mexe tanto com os costumes e com o status quo

Sua mensagem chamou a atenção da FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Em junho, ela esteve na sede da organização, em Roma, para falar sobre o papel dos chefs na transformação dos sistemas alimentares.  

Defensora da agroecologia, ela atua como ativista alimentar e luta pelo fim do desperdício, entre outras questões. Atualmente, vive com a família na Itália, onde faz mestrado em “Comida, Cultura e Mobilidade”, enquanto escreve para jornais e revistas, e se prepara para as próximas temporadas de seus programas de TV.

Com a equipe da ATLANTICO, Bela conversou sobre a democratização da alimentação, o papel do Brasil na erradicação da fome, o desperdício de comida, insegurança alimentar e qual a relação dela com a indústria alimentícia

ATLANTICO – Qual é o primeiro passa democratizar a alimentação?

Bela Gil – A resposta está em um acordo entre a sociedade civil, os consumidores de alimentos, os produtores, as grandes corporações e o governo. Então tem o setor público, o setor privado e a sociedade civil. Eu acredito que muita gente já sabe qual é a solução pra gente democratizar a alimentação saudável. O problema é que a sociedade civil demanda e, às vezes, o governo bloqueia. E quando o governo quer implementar alguma coisa, as corporações bloqueiam. Então não tem um acordo comum porque o poder econômico às vezes fala mais alto que a saúde e a vida das pessoas. 

ATLANTICO – Desses atores quais são os que têm o peso maior? 

Bela Gil – Eu acho que o governo pode começar a fazer mudanças drásticas em relação ao sistema alimentar. Vou dar um exemplo. A gente teve no Brasil, durante o governo Lula, o programa Fome Zero, que foi um programa que conseguiu tirar o Brasil do mapa da fome. Acredito que é uma boa medida o governo começar a taxar produtos ultraprocessados e com alto teor de açúcar. Também acho que é preciso acabar com o subsídio para os agrotóxicos e para as grandes monoculturas. Isso já seria um outro importante passo porque iria incentivar a produção agroecológica. O comércio e o consumo desses alimentos se tornariam mais acessíveis tanto geograficamente como fisicamente. Com essas medidas o governo já conseguiria mudar o sistema alimentar para que todos tenham acesso à boa alimentação. 

ATLANTICO – Falando em Fome Zero, sabemos que o Brasil é líder na exportação de carne e é um dos maiores produtores em várias culturas agrícolas. Qual o papel do Brasil na transformação da cultura alimentar do planeta? Como você avalia o peso do Brasil nesse processo? 

Bela Gil – No Brasil, quase 40% da economia do PIB vem do agronegócio, dessas grandes exportações de soja e carne. A sociedade como um todo paga por isso. A gente está exportando e ganhando dinheiro. Têm muitas externalidades da produção de comida que a gente precisa começar a colocar no papel, como as vidas indígenas, a poluição para as águas, para a fauna e para a flora, além do desmatamento. Esses custos são verdadeiros. O Brasil, como grande produtor e grande exportador deve implementar esses custos. Talvez esse dinheiro que a gente ganha não compense. Então vamos olhar para o outro lado, vamos entender melhor qual o tipo de desenvolvimento a gente quer porque desenvolvimento econômico diz muito pouco sobre um país. A gente precisa de um desenvolvimento humano, um desenvolvimento social. A gente quer ar puro. A gente quer comer bem.  A gente quer educação. Então eu acho que se o Brasil colocar isso em prática, e como pauta, pode ser um grande avanço para que outros países produtores também mudem a sua forma de lidar com a economia.

“A gente quer ar puro. A gente quer comer bem.  A gente quer educação”

ATLANTICO – Os alimentos fornecidos industrializados, com excesso de açúcares, gorduras e carboidratos ganharam o apelido de Big Food. Quais as estratégias dessa indústria e como lidar com os riscos desse tipo de alimento? 

Bela Gil – É muito simples e muito complexo ao mesmo tempo. Simples porque na última década foi revelado como a indústria do açúcar bancou várias pesquisas escondendo sobre o mal do açúcar como grande provocador de doenças  como obesidade, diabetes e do coração. Tiraram o foco do açúcar e jogaram na gordura. Na verdade, o grande culpado dessa grande epidemia de obesidade que a gente vive hoje é o açúcar. Precisamos ficar muito atento em relação ao marketing de alimentos e também nessa relação entre alimento e a saúde. Existem armadilhas como estudos que falam, por exemplo, que o chocolate faz muito bem para o coração. Quem pagou esse estudo pode ter sido uma indústria de chocolate, como a Nestlé. Para um chocolate ser muito bom para o coração talvez tenhamos que comer um chocolate 100% cacau, e em quantidades bem pequenas. E isso vale para o mercado  também. Você vai comprar uma barra de chocolate nos Estados Unidos e encontra um selo escrito “aprovado pela associação dos cardiologistas” como um alimento que reduz o colesterol. É muito marketing. A indústria farmacêutica e a indústria alimentícia conversam muito. E colocam essas armadilhas em cima da gente para a ganhar dinheiro. Então, a gente precisa estar muito atento a tudo isso. É importante não acreditar em nada sem ler mais profundamente. Mensagens do do tipo “esse alimento cura isso, esse alimento cura aquilo” normalmente são patrocinadas por uma grande indústria, seja de comida, seja de remédio.

ATLANTICO – Você declarou apoio ao novo modelo de rotulagem frontal, que já está em vigor no Chile. Esse tipo de medida pode ajudar a mudar a mentalidade das pessoas? 

Bela Gil – Eu acho que em parte sim. A medida facilitou e mudou a forma como o consumidor escolhe os alimentos no Chile, que teve uma queda significativa em relação ao consumo de alimentos ultraprocessados. As pessoas ficariam mais seletivas, ao meu ver. Isso pode ser muito bom ao mesmo tempo que a gente precisa entender só alimento processado e industrializado vai precisar disso. Uma comida de verdade não vai. Então, eu acho que o único problema de dar foco na rotulagem é que pode ser uma forma de dar um aval para que as pessoas consumam mais alimentos ultraprocessados. Acredito que o foco precisa ser sempre evitar esses pacotinhos mesmo que seja um produto que não tenha nenhuma alerta na frente. É mais importante educar o consumidor a comer comida de verdade e evitar os alimentos ultraprocessados. Mas, como sabemos, esses alimentos vão continuar por aí e é difícil combatê-los. Por isso, eu acho sim que a rotulagem frontal pode ajudar o consumidor a fazer uma escolha mais consciente. 

ATLANTICO – Por que o brasileiro desperdiça também tanta comida? 

Bela Gil – Eu acho que vem de uma cultura típica brasileira, que é a cultura da abundância. A gente é visto como celeiro do mundo. A gente tem uma terra muito fértil. Pero Vaz de Caminha já falava que “plantando aqui tudo dá”. A gente tem essa cultura de que tudo é muito fácil. Da cultura da abundância veio o desperdício. E tem também a falta de conhecimento do que a gente pode fazer, como a gente pode fazer para aproveitar melhor os alimentos. 

ATLANTICO –  Como você avalia o aumento da fome no mundo? E quais os impactos disse no continente africano?

Bela Gil – A África está em um estado muito pior do que o Brasil. Isso porque o Brasil ainda tem uma vantagem de não ser tão afetado com as mudanças climáticas como acontece com a África. Então, com tantas mudanças, os agricultores fica muito mais na mão do meio ambiente. E isso gera a falta de produção de alimentos e a fome, obviamente. E também ocasiona toda essa onda de emigração que a gente tá vendo. Tudo isso está muito relacionado com nosso  sistema alimentar atual, que produz comida para alimentar a população inteira do mundo. Somos 7,9 bilhões e a gente produz comida para 9 bilhões de pessoas. Mas a comida não chega no prato de quem precisa. E isso ocorre porque a gente tem um sistema muito falho de distribuição. A distribuição e a produção de comida estão sendo feitas de uma maneira errada, de uma maneira que não atinge o objetivo de alimentar a população como um todo. Eu acho que isso se dá porque a gente tem a produção e a distribuição de alimentos na mão de poucas pessoas muito poderosas. A gente tem que democratizar a produção e distribuição de alimentos. Enquanto a gente tiver poucas pessoas, corporações e governos tomando conta da produção de alimentos e não priorizamos a soberania alimentar, para que os agricultores possam escolher o que produzir, como produzir e da melhor maneira, com certeza a gente ainda vai ter fome no mundo. 

ATLANTICO –  O futuro da alimentação é saudável? Quais são as principais tendências nesse sentido?

Bela Gil – A gente pensa muito em altas tecnologias. E geralmente tecnologias ligadas à ficção científica, etc. Acho que a gente pode entender como tecnologia muitas tradições dos nosso antepassados em relação a produção de comida. A agroecologia é uma grande prova disso, nada mais é do que um apanhado de formas ecológicas de se plantar alimentos, que os nossos ancestrais tinham. Eu acho que a gente pode olhar pra trás e entender como essas pessoas usavam a terra, plantavam, consumiam alimento e usar a tecnologia desse povo. Essa tecnologia ancestral e aplicar para um contexto atual, um contexto moderno e poder melhorar isso com as ferramentas que a gente tem hoje. A gente tem tudo para poder alimentar o mundo inteiro de uma maneira super sustentável e eficiente. Só que a gente não faz porque não tem vontade política suficiente pra isso hoje em dia. A resposta está muito aí. Eu vejo muito o futuro da alimentação com um olhar pra trás não como uma volta, mas como um resgate ao passado para gente melhorar o futuro. Eu acredito muito na comida de verdade, na comida plantada na terra. Eu acho que tá muito relacionado a valorização da cultura da terra. A gente não precisa pensar em laboratórios, em hortas verticais, não precisa pensar nada disso como a solução, a revolução alimentar, eu acho que a gente tem que olhar pra terra, pro produtor e pra semente. Tendo isso como prioridade a gente avança e atinge o objetivo pro futuro da alimentação ser um futuro saudável

ATLANTICO – Como faço para alguém começar hoje a ter uma alimentação saudável? Qual o primeiro passo: ler mais, saber de onde vem a comida? 

Bela Gil – Uma dica simples e básica é trocar o supermercado pela feira. A gente precisa desembalar menos e descascar mais, tem essa frase que eu adoro. Comer mais frutas, mais verduras, ter uma dieta à base de plantas. Isso faz com que a gente tenha uma conexão muito maior com nossos alimentos. Não vale tanto a pena ter uma paixão muito grande sobre um alimento e não entender nada sobre como ele é feito, da onde ele veio e quais são os impactos dele na nossa sociedade. Quando você começa a comer mais da terra, da natureza, você se aproxima dela. A forma que a gente tem no dia a dia de se aproximar da natureza é comendo comida de verdade. Uma vez que você troca os ultraprocessados, os industrializados, os pacotinhos em geral por esses alimentos, esses ingredientes naturais mais próximos da terra possível, a sua alimentação muda completamente. A sua saúde muda completamente. Então o primeiro passo é esse: trocar o supermercado pela feira.

ATLANTICO – Você é a favor de um maior rigor na divulgação dos alimentos ultra processados e industrializados em defesa de uma alimentação mais natural. Essa sua narrativa muitas vezes vai contra a indústria. Como o mercado, inclusive o publicitário, tem reagido ao seu discurso? 

Bela Gil – O meu papel é sempre melhorar a vida de todos. Não me sinto intimidada por qualquer um dos setores em relação ao que eu falo ou ao que eu penso e eu acho isso muito bom. Se eu falo e eles se incomodam é porque eu estou falando alguma coisa que é boa para o consumidor, boa para a saúde da população porque a gente sabe que a maior parte deles pensam no lucro, afinal são empresas. Normalmente o lucro dessas empresas vai contra a saúde da população. Com o meu discurso, com as minhas receitas, com a atenção que os consumidores dão para aquilo que eu falo, as pessoas procuram alimentos que eu divulgo. As indústrias estão pensando atenção nisso e estão mudando. Hoje, em qualquer supermercado popular você já consegue encontrar, por exemplo óleo de côco e  painço que eram muito mais difíceis difíceis. Eu comecei a fazer leite de amêndoa e leite de côco no meu programa de TV . Hoje em qualquer supermercado tem leite de amêndoa em caixinha para vender. Então, eles estão atentos e se esse for o meu papel de ter que ser a chata, ter que incomodar para que eles mudem, eu vou continuar sendo. 

Biografia

Bela Gil nasceu como Isabela Giordano Gil Moreira, em Salvador, mas cresceu no Rio de Janeiro. Através da prática de ioga, passou a se interessar pelos benefícios físicos e mentais da culinária saudável. Também recebeu uma forte influência do pai, o músico Gilberto Gil, que segue a filosofia macrobiótica desde a década de 1970. 

Aos 18, se mudou para Nova York, onde morou por quase oito anos. Por lá, se formou em Culinária Natural pelo Natural Gourmet Institute e em Nutrição e Ciência dos Alimentos pelo Hunter College. Ao estudar a filosofia ayurveda, descobriu que as escolhas alimentares de cada um afetam não só sua saúde, mas todo o planeta. 

Enquanto buscava mais conhecimento, atuava como personal chef para os amigos mais próximos e estagiava em dois restaurantes veganos badalados em Manhattan: o Candle Cafe e o Candle 79.

Em 2013, Bela voltou a viver no Rio e passou a trabalhar como orientadora alimentar. 

Entre outras atividades, ela também desenvolve o projeto Bela Infância, que visa combater a obesidade infantil através de ações educativas com crianças de escolas públicas e particulares de todo o Brasil. 

Com a colaboração de Emanuel de Macêdo

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