Há sete anos, pelo menos uma vez por semana, o pastor Nelson Massambani e um grupo de quase 70 voluntários da Igreja Batista Central visitam pessoas encarceradas nos presídios da região metropolitana de Fortaleza. A ação, fruto de um acordo de cooperação técnica com o governo local, garante que os presos participem de um grupo reflexivo de partilha de experiências, encorajamento e apoio mútuo. “Eu já estive preso e sei o que é estar do outro lado das grades”, revela Nelson. “Quando começamos, nós sabíamos que precisávamos fazer algo diferente do que as outras igrejas já fazem”, diz. Esse trabalho faz parte de um programa bíblico chamado Celebrando Restauração. Criado em 1990 nos Estados Unidos, o método mistura religiosidade com a metodologia do 12 Passos, conhecida mundialmente pelos grupos de apoio mútuo que cuidam de pessoas vítimas do vício em álcool e outras drogas.
Em 2003, Fortaleza foi a primeira cidade do Brasil autorizada a traduzir e adaptar o material original, que é utilizado em 10000 igrejas ao redor do mundo. “O objetivo é ajudar as pessoas a vencer vícios, traumas emocionais, maus hábitos e comportamentos destrutivos”, explica Nelson. A partir de então, os voluntários liderado por Nelson organizam grupos de apoios e palestras públicas para promoção da cultura de paz. “As palestras têm um fim de restaurar a vida de qualquer pessoa. Nós temos um ambiente seguro para ajudar as pessoas a caminharem sozinhas. Elas são abertas ao público e acontecem em todas as épocas do ano”, conta.
UMA NOVA REALIDADE
Ações como o programa Celebrando Restauração são consideradas bem-vindas tanto pelo Estado como pelas organizações que estudam a situação carcerária do Brasil. “Nosso trabalho não dá conta de todas as dimensões do ser humano e esses conhecimentos específicos dos grupos reflexivos contribuem muito para o processo de ressocialização”, reconhece Elton Gurgel, coordenador da Central de Medidas Cautelares da Secretaria de Justiça do Ceará, órgão estatal responsável pelas prisões de Fortaleza. “Entendemos a dimensão da religiosidade e é óbvio que devemos dar margem à multiplicidade. Por isso trabalhamos com outros grupos, como a Pastoral Carcerária da Igreja Católica e já tivemos também o apoio da Igreja Messiânica e da Organização Brahma Kamari”, descreve Gurgel.
Segundo ele, esse acompanhamento psicossocial pode prevenir o cometimento de novos delitos. Por isso, o próprio Governo promove grupos reflexivos, com uma equipe multidisciplinar que conta com advogados, psicólogos e assistente social. Por mês, esses grupos atendem cerca de 3 mil pessoas cumpridoras de medidas cautelares ou monitoradas por tornozeleiras eletrônicas. Cada grupo acolhe 25 pessoas, que são divididas em temas específicos, como mulheres, drogas ou delitos de trânsito. Como parte da pena alternativa, cada pessoa se compromete a participar dos grupos de apoio por pelo menos oito meses e o comparecimento é registrado através de um rigoroso controle biométrico. “No primeiro comparecimento, a pessoa participa de uma entrevista com um psicólogo e assistente social.
Depois, são tomadas providências imediatas como documentação e tratamento de saúde com orientações e encaminhamentos. A partir disso, elas recebem orientações sobre as obrigações processuais que precisam cumprir”, detalha Elton Gurgel. O advogado Cláudio Justa reconhece a importância do trabalho de ressocialização realizado pelos grupos reflexivos, religiosos ou não. Justa é presidente do Conselho Penitenciário do Ceará (Copen), órgão autônomo que fiscaliza o sistema penitenciário e apresenta soluções para aprimorá-lo. “O encarceramento é deletério e criminógeno. No lugar de ser um fator de prevenção ao crime ele faz com que as pessoas saiam mais agressivas.
Ele também diminui muito a capacidade do Estado para criar portas de saídas eficazes para esse públicos. Enfim, o sistema penitenciário não ressocializa”. Apesar dos avanços governamentais, ele aponta dois problemas. O primeiro é cultura do encarceramento. “Existe muita resistência para os juízes aplicarem medidas alternativas”, reclama. O segundo problema é a demanda reprimida, que é alta. Apesar dos resultados serem considerados satisfatórios – o índice de reincidência criminal é de aproximadamente 15% – os cumpridores de medidas alternativas não chegam a 5% do total.
UM ENORME DESAFIO
Com 726 mil presos, o Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo, atrás de Estados Unidos e China. 89% desse contingente está lotado em unidades superlotadas e 78% dos estabelecimentos penais com mais presos que o número de vagas. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 40% do total de pessoas recolhidas nas penitenciárias do Brasil são presos provisórios, ou seja, ainda não possuem condenação judicial. “Quase todos os estados estão com um trabalho forte junto aos tribunais de Justiça para implementar as audiências de custódia, para que as pessoas não sejam recolhidas como presos provisórios”, explicou o diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Jefferson de Almeida. De acordo com Almeida, o órgão está investindo em políticas públicas que qualifiquem a porta de entrada, de saída e as vagas do sistema, de forma a propiciar um “ambiente prisional mais humano”. Do universo total de presos no Brasil, 55% têm entre 18 e 29 anos. “São jovens que estão encarcerados”, lamenta Almeida. “As desigualdades sociais são, infelizmente, um dos vetores primordiais para a geração de violência urbana. Elas causam uma má distribuição de renda e o anseio imediato pela realização de desejos de consumismo. Com a baixa mobilidade social, as pessoas não encontram meios éticos e legais para realizar seus desejos e o tráfico de drogas acaba representando um meio para conseguir ascensão social”, acredita Elton Gurgel. “O problema é que não temos condições de extinguir os presídios. E infelizmente muitos não respondem a esse tipo de estímulo proporcionado pelas penas alternativas. Mas esse tipo de trabalho realizado pelo Estado ou pelo programa Celebrando Restauração é um caminho que a sociedade tem que apostar”, entende Cláudio Justa, da Copen.
REGRAS GLOBAIS
Os padrões mínimos para tratamento de prisioneiros foram adotados em 1957 e revisados em 2015 quando a Assembleia Geral da ONU chamou essas revisões de “Regras Nelson Mandela” em homenagem ao presidente sul-africano. Na resolução, os Estados-membros também decidiram ampliar o escopo do Dia Internacional Nelson Mandela, comemorado anualmente em 18 de julho, para que fosse também utilizado para promover condições humanas de aprisionamento, lembrando que os presos continuam fazendo parte da sociedade e valorizando o trabalho dos funcionários das prisões e dos assistentes sociais.
A SITUAÇÃO AFRICANA
“Diante de desafios insuperáveis como a escassez de recursos, várias nações africanas persistem no movimento para reformar seus sistemas penais reduzindo as populações carcerárias e promovendo os direitos dos prisioneiros. Com efeito, uma mentalidade voltada para as reformas e os direitos está varrendo os sistemas prisionais africanos. Mas somente boas intenções não serão suficientes. É preciso uma mudança concreta imediata. A única questão que perdura é como implementar as diretrizes que até agora foram apenas anunciadas”, sentencia o jurista e pesquisador sul-africano Jeremy Sarkon, no livro “Prisões na África: uma avaliação da perspectiva dos direitos humanos”, publicado em 2008 e um dos mais celebrados estudos nessa temática. De lá para cá, a situação pouco mudou, apesar dos esforços da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (ACHPR), que têm competência para examinar a situação das pessoas privadas da sua liberdade no território dos 53 países que assinaram e ratificaram a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povo. Desde 1997, mais de 20 missões pela comissão de Prisões e Condições de Detenção da ACHPR. Entre estes países estão Cameroun (2002), Etiópia (2004), África do Sul (2004) e Namíbia (2001)