Por Gualter George*

O cenário que Celso Amorim vislumbra da ampla sala do seu confortável apartamento na avenida ATLANTICO, orla do Rio de Janeiro, é pleno de beleza, de azul e de tranquilidade. Uma imagem de que precisava para seu cotidiano, certamente, depois de uma longa temporada no exercício da diplomacia, onde o mundo real se apresenta na sua maneira mais dura, imperfeita e crua. Chanceler brasileiro ao longo de aproximadamente dez anos, em três mandatos presidenciais, aposentado, ele continua de olho na política internacional a partir de uma perspectiva nova. Sem mais os cuidados excessivos que a oficialidade anterior exigia, acompanha o movimento da geopolítica com o mesmo desejo de entender povos e países que o levou à exitosa carreira de diplomata. Um entusiasta da causa africana, Celso Amorim defende que se olhe com mais atenção para aquele lado do mapa por suas potencialidades e riquezas, não pelo coitadismo que costuma confundir a defesa de investimentos e ações na região. Um discurso que, sempre que pode, transformou em prática. A revista ATLANTICO foi ao Rio conversar com Celso Amorim, numa tarde nublada de quarta-feira. Vale a pena conferir o resultado, a seguir, porque há poucas vozes no mundo com igual capacidade de falar sobre o quadro internacional de relações, especialmente porque ele ajudou a definí-lo.

ATLANTICO – Embaixador, sob o ponto de vista da diplomacia, o mundo hoje é mais fácil ou mais difícil de se explicar ou de ser entendido?

Celso Amorim – O mundo hoje é mais complexo do que era, quando eu era jovem. Naquela época você basicamente tinha dois grandes blocos: o Ocidente e o Oriente. Você era ou socialista ou comunista, o que fosse, e pendia para o bloco do Leste ou era a favor do capitalismo, da democracia liberal e pendia para o Ocidente. Havia uns poucos países, com pouca influência ainda na época, os neutros, não alinhados, que com o tempo cresceram, inclusive, em influência. Hoje você não tem clareza ideológica sobre atitude de país ‘a’ ou país ’b’. Certo país pode, por um lado ser muito independente, mas quando você vai procurar quem são os aliados dele, vai encontrar gente ou de direita ou de esquerda. Então é um mundo mais complexo. Agora, mais complexo não significa necessariamente pior, você tem o surgimento de países novos. O nosso tema central é sem dúvida alguma a África… Muita gente fala em renascimento africano, mas não é, a África, como uma entidade política, é um nascimento africano, que está se desenvolvendo e que hoje tem muito mais força do que há 50 anos atrás.

ATLANTICO – E o senhor considera que nesse mundo novo e mais complexo, o Brasil está bem posicionado?

Celso Amorim – O Brasil tem todas as condições para estar bem posicionado. Quer dizer, o Brasil é um país que está entre os cinco maiores em termo de população, de território. Do ponto de vista econômico está entre os 6 ou 7, depende um pouco do câmbio, mas, enfim, certamente, em poder de compra, ele estaria entre os 5 primeiros. É um país que tem capacidade de dialogar com diferentes partes do mundo. Então acho que o Brasil tem todo potencial, realmente, para se posicionar bem. Agora isso depende muito também da nossa vontade de atuarmos dessa maneira.

ATLANTICO – Que papel o senhor entende, pessoalmente, que jogou dentro desse processo de fazer o Brasil um ator mais presente?

Celso Amorim – Olha, eu dei muita sorte como ministro das Relações Exteriores. A primeira, fui ministro com o Itamar Franco, era um governo um pouco de transição, o Itamar era um homem que tinha uma visão nacionalista e muito voltada para a América do Sul também, então isso me ajudou muito aqui na consolidação do Mercosul, gosto de dizer que o Protocolo de Ouro Preto foi assinado na gestão dele; a primeira vez que nós lançamos a ideia da Alcsa (não Alca) foi na gestão do presidente Itamar, a CPLP, que foi lançada na gestão dele e que não deixou de ser importante até pela dimensão africana, que continha; não só por isso, mas também pela dimensão africana e tive mais sorte ainda, digamos, também pelo tempo e pela confiança que em mim depositou o presidente Lula, uma pessoa de grande sensibilidade, de grande confiança em si e no Brasil e de grande sensibilidade com os problemas do mundo. Então, pude trabalhar em condições que favoreceram uma atuação importante do Brasil em esferas variadas, na região onde nós consolidamos a integração sul americana em negociações comerciais, onde nós conseguimos evitar um acordo desfavorável na Alca e conseguimos também mudar os termos das negociações na OMC, em negociações complexas como o acordo Teerã, que é objeto do meu último livro, também. Na aproximação com os países árabes e muito na nossa aproximação com a África, onde nós abrimos muitas embaixadas, mais de metade, eu acho, das embaixadas que existem hoje foram abertas ou reabertas na minha gestão, programas importantes, desde “fazenda modelo”, “Pró-algodão”, até fábrica de medicamentos em Moçambique, são exemplos dessa orientação que teve a política externa.

ATLANTICO – Pois é, vamos falar sobre relação e a visão que senhor tem da África. O senhor diz ter sido, meio que vamos dizer assim, alertado para a importância de olhar para a África pela sua mulher. Em que contexto isso se deu?

Celso Amorim – Bem, sem tirar os méritos dela, eu sempre me interessei por questões africanas, quando fui chefe do Departamento Cultural (do Itamaraty), em vez de ficar viajando para Londres ou outro país europeu, fui a Guiné-Bissau, fui a Moçambique, então eu tinha uma sensibilidade para África também. Mas o fato anedótico que eu narro é que no começo do governo Lula, eu era embaixador em Londres antes, então minha mulher tinha ficado algum tempo na Inglaterra e depois de uns 15 a 20 dias, em um dos telefonemas, contei um pouco as coisas que nós estávamos fazendo: “Olha, criamos o grupo de amigos da Venezuela, vamos tomar tal iniciativa em relação à Alca, já fui a Argentina para consolidar uma posição comum em relação ao OMC…” E aí ela perguntou: “e pela África, vocês não tão fazendo nada?” Mas é porque ela sempre me cobrou muito e nesse sentido ajudou muito. E depois, devo dizer, ela me ajudou muito também porque trabalha no Serpro, no ministério da Fazenda. Em vários dos programas que nós fizemos na África, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde, para citar os que me vêm à mente imediatamente, o Serpro instalou telecentros, cyber cafés, que foram e são muito importantes, e, em alguns deles, ela até foi comigo para inaugurar, ver como é que estavam funcionando, então minha mulher sempre me apoiou muito.

ATLANTICO – Agora não é uma decisão fácil, eu não diria nem optar pela África porque essa não é a questão, mas olhar para a África, considerando o que a região tem a nos oferecer comercialmente, A grande crítica que se faz à diplomacia do governo Lula é exatamente de não ter olhado os grandes mercados, para onde o país focar interesses na perspectiva de obter maiores negócios e a África, evidentemente, não parece oferecer hoje essa possibilidade. Como é que é olhar para uma região com a qual o país tem dívida cultural, humana….

Celso Amorim – Olha, primeiro eu acho que é um mercado sim. Não é obviamente tão grande, mas também, você tem que ver o seguinte: quando se fala que os EUA são um grande mercado, que a União Europeia é um grande mercado, como nós já olhamos para eles durante tanto tempo, tudo aquilo que era fácil obter já foi obtido. Tudo que é adicional nosso toca no nervo deles, em termos de despertar interesses protecionistas. Em geral, o que acontece é que o poder de negociação deles também é muito grande e eles cobram preços às vezes excessivamente caros por pequenas vantagens que venham a nos conceder, mas eu diria que também as coisas não são excludentes. Acho que as nossas relações com a África precisavam de uma ação afirmativa, porque se olhava pouco para África e, além desses fatores humanos, culturais, que nos aproximam, há interesses políticos também. A África são muitos países. Eu, em vários momentos na ONU, quando fui embaixador, as pessoas ficavam querendo saber como era que ia fazer para eleger, para obter um voto do Japão ou da Alemanha, enfim, importantes naturalmente. Eu dizia: “olha, a verdadeira batalha é a batalha pela África.” Então, além da solidariedade, que acho que é uma dimensão que não deve ser desprezada na diplomacia, porque ela é verdadeira, é real, havia também interesse, por exemplo, na reforma do Conselho de Segurança, que não se concretizou, mas a África estava assim meio dividida, se um pouquinho mais da África tivesse vindo para as teses que nós defendíamos, junto com a Alemanha, nesse caso o Japão e Índia, elas teriam passado. Então, quer dizer, é um continente importante sob todos os aspectos; você não elege uma pessoa, com todos os méritos que as pessoas tenham, não quero tirar, mas você não elege uma pessoa como o (José) Graziano para a FAO ou o Roberto Azevedo para a OMC sem o apoio africano, é muito difícil que isso aconteça. Então, acho que é muito importante sim para o Brasil ter uma representação forte e coerente na África. E tudo que você faz lá é novo, tem um efeito muito grande, entendeu? Tem uma frase muito boa que eu costumo citar do queniano Calestou Juma, que diz o seguinte: “Para cada problema africano existe uma solução brasileira”. Eu acho uma frase tão expressiva do que a gente pode fazer pela África. E a gente tem que realizar esse potencial; é bom pra eles e é bom pra nós.

ATLANTICO – O senhor foi muito atuante como Chanceler, claro, no Brics, no momento em que esse bloco estava numa outra situação, diferente da atual, inclusive o Brasil do ponto de vista econômico. O senhor diria que, nesse momento, o Brics sofre algum tipo de ameaça?

Celso Amorim – Essas coisas oscilam. Na realidade, o Brics começou… o seguinte: Nós criamos inicialmente o Ibas, formado por Índia, Brasil e África do Sul, que eram os três países, dentro de uma concepção, que formavam três grandes democracias, multiculturais, multirraciais, cada uma em uma região diferente do mundo em desenvolvimento, e na realidade o Ibas era muito cortejado pela Rússia e pela China, que se sentiam excluídos; em paralelo, surgiu a ideia de institucionalizar o Brics, que não é uma invenção nossa, é invenção do Jim O’Neill, que classificou esses países dessa maneira, que são os grandes países emergentes, que teriam influência… E isso foi feito. Eu até tenho muito cuidado porque cuidei muito enquanto era ministro das Relações Exteriores para que o Brics não sufocasse o Ibas, para que o Ibas continuasse mantendo a sua personalidade. Enfim, essas coisas oscilam um pouco. No caso da China, nós não temos a menor dúvida de que é o maior dos Brics e que vai continuar crescendo. Ela tá crescendo 7%… Você tem que colocar tudo… isso é a verdadeira usina, uma das verdadeiras usinas da economia mundial. Agora, para nós interessa também criar um mundo mais equilibrado, mais balanceado. Não interessa uma dependência total nem dos EUA nem da China, para falar a verdade, nem de qualquer país, nós temos que trabalhar dentro dessa multiplicidade, que foi uma das coisas que nós insistimos muito. E vimos o Brics no quadro dessa multipolaridade, tanto econômica quanto política, criar mais equilíbrio no mundo e com isso dá mais uma situação que favorece o Brasil.

ATLANTICO – Agora, tentando voltar um pouco para questão da relação do Brasil com a África….

Celso Amorim – Até na África, o fato de ter um grupo com os Brics é importante, diversifica as fontes de financiamento. A China está muito presente lá. Agora, eu acho que o Brasil tem que se fazer mais presente, porque o Brasil tem uma forma especial de se relacionar e de cooperar.

ATLANTICO – O senhor é otimista com a África?

Celso Amorim – Sou, a África tem crescido bastante. Ela está passando por problemas, enfim, graves, que, em outros países, ocorreram antes. É claro, agora lá ocorre de maneira mais acelerada, são nações jovens. Se você for contar a história da Europa em 500 anos, a África está passando por isso em 50. Então, evidentemente, muitas dessas turbulências que ocorreram na Europa, guerras religiosas e outras, que levaram séculos, tão ocorrendo agora. Então, a gente tem que ver a questão nesse contexto. Mas eu sou muito otimista, porque acho que a África tem crescido, ela tem um grande potencial, tem havido um aumento considerável não só da produção mineral, das commodiities, em geral, mas também da produção de manufaturas. Então, eu sou otimista e acho que o Brasil pode contribuir para isso.

ATLANTICO – Deixa eu tentar entender um pouquinho como é que o senhor foi parar no mundo da diplomacia. Quando o senhor percebeu e decidiu que seria diplomata? Planejou desde jovem?

Celso Amorim – Eu não posso nem dizer que é uma vocação, não tenho parente nenhum diplomata, não tive nenhum amigo diplomata, que eu conhecesse. Eu, na realidade, me interessava mais pelo mundo das artes, da literatura, pela política também, mas um pouco do lado da filosofia política, em geral ela política externa brasileira, porque eu era muito jovem na época da política externa independente, de Santiago Dantas… Isso também despertou muito a minha imaginação, mas por circunstâncias variadas, que seria muito longo de explicar, eu tive que me afastar um pouco desse mundo das artes para fazer um concurso público e escolhi o Itamaraty, porque tinha interesse pela política externa. Poderia ter feito concurso para fiscal, por exemplo, do ministério da Fazenda, que ganha muito mais.

ATLANTICO – O senhor entrou no Itamaraty, ou enfim, no sistema, por volta de 1963. Qual foi o momento que o senhor considera, desde então, em que o Brasil mais se afirmou?

Celso Amorim – Eu acho que não tem dúvida. Não é pelo fato de eu ter sido Chanceler, mas eu acho que a eleição do presidente Lula, o que ela significou… A eleição do presidente Lula foi aquilo que o Obama dizia lá, “nós podemos”, então, se nós podemos eleger um operário, um operário de verdade, fiel às suas origens, nós podemos também ter uma atuação internacional livre, independente.

ATLANTICO – Essa era a compreensão que o senhor sentia, quando saia pelo mundo com o presidente Lula? Era a impressão que o mundo tinha?

Celso Amorim – Veja bem, tudo requer uma qualificação. Não é só isso; o Brasil é o Brasil, o Brasil é grande. Mesmo antes do Lula, o Brasil tem o seu papel importante, que eu pude testemunhar, na OMC e em muitos outros momentos.. Aqui, por exemplo, na região, que o Brasil trabalhou pela pacificação, nem tive nada com isso, eu estava fora, entre Equador e Peru. Claro, o Brasil sempre teve um papel, isso é indiscutível, mas no governo do presidente Lula, isso teve um impulso muito grande, primeiro porque ele apoiava, ele achava que o Brasil tinha que ter esse papel. Eu acho que ele escolheu um Chanceler que pensava como ele, que não ficava também dizendo: “toma cuidado”, “não faz isso, não faz aquilo”… Era o contrário, acho que ambos tínhamos muita afinidade nesse sentido, a orientação geral era dele; e ele próprio também, acho que isso precisa que se diga, era um grande trunfo da política externa, porque o Lula, a história dele… Todo mundo queria sair na foto com o Lula, podia ser de esquerda ou de direita, valorizava.

ATLANTICO – Qual o senhor entende que seja o papel dos organismos multilaterais dentro do mundo contemporâneo, que parece mais complexo. Por exemplo, de um organismo como a ONU, que o Brasil, há tempos, junto com outros países, defende uma reforma profunda.

Celso Amorim – A ONU é frágil e é fraca diante do poder dos Estados. Nós estamos muito longe de ter um governo mundial, nem sei se nós queremos ter um governo mundial, digamos, no horizonte próximo, mas apesar de tudo…

ATLANTICO – Na prática, é o que a gente tem, com a força dos Estados Unidos, que já foi até maior…

Celso Amorim – Já foi maior, relativamente, mas o que eu queria dizer é que a ONU não impede ações, como foram a do Iraque, mas ela é um fator moderador, ligeiramente moderador, nesse caso, e ela também tem sido foro para discussão de outros temas. Do tipo mudança de clima, meio ambiente, as próprias questões relacionadas ao desenvolvimento; a OMC em questões comerciais. “Ah, mas a OMC é injusta.” Sim, tudo bem, mas sem ela é pior, é lei da selva. Quer dizer, eu me lembro, trabalhei no ministério da Ciência e Tecnologia, quando os americanos nos ameaçaram retaliar por causa da política de informática e depois por causa da política de patentes. Na OMC, eles tentaram levar a questão dos remédios pra lá, viram que não ia dar certo, recolheram o jogo. Então, bem ou mal, aquilo é um fator de moderação, é um lugar onde você pode solucionar, talvez você não solucione todas as controvérsias, mas soluciona algumas. Então, eu acho que a gente, inevitavelmente, tem que trabalhar pelo fortalecimento da ONU, não pra que ela venha a ser um governo mundial, mas para que essas regras sejam cada vez mais respeitadas, elas ainda são pouco respeitadas. Agora a crítica, que é quando as pessoas “Ah, mas a ONU não fez nada”, mas a crítica não é tirar a ONU, é fortalecer a ONU.

Wilson Dias/Agencia Brasil

PERFIL

Celso Luiz Nunes Amorim nasceu em Santos, no litoral do rico estado de São Paulo, em 3 de junho de 1942. Graduou-se em 1965 no respeitado Instituto Rio Branco e, primeiro colocado da turma, ganhou como prêmio o direito de estudar na Academia Diplomática de Viena, onde dois anos depois obteria título de pós-graduação. O primeiro posto diplomático foi em Londres e, desde então, desenvolveu uma das mais vistosas carreiras como embaixador no País. Duas vezes ministro das Relações, nos governos de Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva (neste último, ao longo dos oito anos de depois mandatos), foi também ministro da Defesa, presidente da Embrafilme (estatal de cinema brasileiro, hoje extinta). Como embaixador, destacou- -se como representante do país em Londres e na ONU. É casado com Ana Maria Amorim e pai de Vicente, Pedro, João e Anita.

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