2018 tem sido um ano agitado para Christopher Till. O diretor do Museu do Apartheid, que nas últimas décadas, viaja pelo mundo ajudando a preservar o legado de Nelson Mandela, tem participado das diversas comemorações do centenário do nascimento do líder sul-africano. Entre elas as exposições sobre Mandela em Dublin, Winnipeg , Londres e em Fortaleza, no Brasil, onde conversou com a equipe da ATLANTICO. “Todos querem um pequeno pedaço de Mandela”, brinca. Além disso, ele se prepara para abrir dois novos projetos ambiciosos, ambos na África do Sul: o Mandela Capture Site em Howick, e o Javett Art Gallery and Museum. Mas desde que começou a trabalhar como museólogo e como agitador cultural, no final dos anos 1970, Christopher Till tem uma agenda agitada. Nesta entrevista, ele conta que tem prazer em contar histórias e conectar pessoas, criando espaços que sejam úteis mas que possam proporcionar experiências únicas. Ele também fala sobre a importância do Museu do Apartheid, lugar onde brancos e negros entram separadamente. Para ele, discutir segregação e o ódio nunca foi tão urgente. “Há uma polarização novamente e precisamos mudar isso drasticamente”, adianta. Nesta conversa, Till também fala sobre as tendências sobre museus e sobre a importância deles para o continente africano.
Nascido em 1952, Christopher Till foi educado no Hilton College e na Universidade de Rhodes, onde obteve um MFA e começou sua carreira como Diretor da Galeria Nacional do Zimbabwe antes de servir como Diretor da Johannesburg Art Gallery de 1983 a 1991. Durante seu mandato ele foi responsável por vários inovadores exposições, incluindo “A Tradição Negligenciada: Rumo a uma Nova História da Arte Sul Africana”, asseguraram a Coleção Brenthurst de Arte Africana, e encomendaram várias grandes esculturas para a coleção. Como Diretor de Cultura da cidade de Joanesburgo de 1991 a 2001, ele estabeleceu o primeiro escritório cultural da cidade e dirigiu a formação de políticas de arte e cultura. Ele foi responsável por estabelecer o Festival Internacional de Artes Alive de Joanesburgo em 1992, as Bienais de Joanesburgo em 1995 e 1997, e a reconstrução do Teatro Cívico (agora Joburg Theatre). Ele é o diretor fundador do Museu do Apartheid em Joanesburgo e o Museu do Ouro da África na Cidade do Cabo, e organizou exposições sobre Nelson Mandela, Steve Biko, Oliver Tambo e a Marcha das Mulheres, entre muitas outras.
ATLANTICO — Como você começou sua carreira como museólogo?
Christopher Till — Na verdade, fui estudar arte na escola de arte da universidade. Então, quando terminei o curso de graduação, eu estava em um mestrado e, imediatamente depois disso, fui para um país ao norte da África do Sul. Naquela época, ele era conhecida como Rodésia. E em 1980, quando esse país se tornou independente, fui nomeado diretor da National Art Gallery. Eu trabalhei nesse museu por alguns anos. E então voltei para Joanesburgo, meu lar, e assumi a direção da Galeria de Arte de Joanesburgo, que é um museu de arte da cidade. E a partir daí me tornei diretor de cultura para a cidade. E então me pediram para ajudar em um projeto que seria o começo do Museu do Apartheid. Então minha carreira tem sido em torno do desenvolvimento de museus. Eu trabalhei com um colega por cerca de 24 anos na maioria dos projetos de patrimônio na África do Sul, muitos deles museus. Atualmente estou trabalhando em um novo projeto na Universidade de Pretória. O outro projeto no qual estou trabalhando no momento é onde Nelson Mandela foi preso, o lugar de captura dele. É perto da minha casa, que fica a quatro horas e meia de Joanesburgo. Esperamos abrir o novo museu em setembro. Então eu estive envolvido inicialmente em museus de arte, em festivais, teatro, música e depois na história da política social. E agora estou de volta fazendo novos museus de arte. Então são 360 graus.
Mandela foi o primeiro a dizer “eu não sou um herói”. Ele foi o primeiro a dizer “eu não sou um ícone”. Ele disse: “Eu sou parte de um coletivo”.
ATLANTICO — Que elementos você precisa levar em consideração para iniciar um novo projeto? É um trabalho fácil de fazer?
Christopher Till — É um trabalho muito agradável e tenho a sorte de ser bem sucedido em uma carreira pela qual tenho paixão. É um processo que consiste primeiramente em conceituar, olhar para o ambiente, engajar-se com a comunidade. E, em seguida, colocar tudo junto com um subsídio arquitetônica.
ATLANTICO — Novas tecnologias surgem a cada dia. Como usá-las para tornar os museus mais acessíveis, democráticos e atraentes para todos?
Christopher Till — Por muito tempo eu resisti à tecnologia de alguma maneira, porque em muitas das instituições que estive, frequentemente, a tecnologia não funcionava. No entanto, eu acho que a tecnologia muda o tempo todo e é surpreendente o que pode acontecer. No meu novo museu, que projetei no local da captura de Nelson Mandela, eu e minha equipe estamos montando uma exposição muito cheia de tecnologia. Estamos fazendo uma experiência imersiva de 360 graus onde há uma longa mesa de luz de 20 metros que conta uma história à medida em que você anda por ela. Você pode se envolver com iPads, dispositivos de Realidade Virtual e telas de vídeo. É bem imersivo! O uso de tecnologia em museus contemporâneos é vital para poder envolver a geração mais jovem. Porque todo mundo tem um telefone, todo mundo está se comunicando, conversando, procurando informações instantaneamente. Portanto, você precisa trazê-los para um espaço onde você possa interagir com eles de maneiras diferentes. E acho que é isso que estamos tentando fazer. E eu digo que meu grande experimento será uma exposição aberta em setembro e espero que a tecnologia esteja atualizada e não acorde em outubro e descubra que há muita tecnologia para mudar.
ATLANTICO — Quais as tendências para os museus nos próximos anos? Você aposta em algo relacionado com essas tecnologias e experiências mais imersivas?
Christopher Till — Eu acho que tudo isso. Se você observar o Museu Victoria and Albert, em Londres, por exemplo, eles entraram em um espaço onde eles olham para assuntos que são populares, que são envolventes e criam experiências como, por exemplo, uma exposição sobre David Bowie, que está em Nova York no momento. E eles criaram essa experiência extraordinária com os artefatos e filmes e as pessoas ficam por horas na porta para ver. Mudar exposições que os museus colocam é uma forma de trazer novos públicos o tempo todo. Então eu penso que é um equilíbrio de todos os interesses populares e formas inovadoras de trazer à tona os objetos e elementos que você tem no museu. Penso também que é preciso vincular tudo isso a um programa de educação que olha as questões que os jovens enfrentam e trazer isso para a matriz do museu. Então, eles se envolvem, se sentem parte, dizem que querem ouvir nossas vozes. Neste novo museu de arte que estamos desenvolvendo agora, tentamos fazer exatamente isso.
ATLANTICO — Qual a importância dos museus para o continente africano e por que os governos deveriam investir neles?
Christopher Till — É um grande problema. É um problema inclusive no meu país. Há tantos museus realmente bons, mas eles vêm de um contexto colonial. Então, precisamos mudar essa percepção. Precisamos dizer não para a idéia de coletar a herança de qualquer lugar, que este patrimônio não deve ser vista de uma maneira colonial. Ele deve ser vista através de uma identidade coletiva. O papel que os museus desempenham na sociedade não é apenas manter esses objetos seguros, conservados e disponíveis, mas é colocá-lo de volta na visão social, histórica, até mesmo política da sociedade. E na África do Sul, o governo não fornece quantidade suficiente de dinheiro para essas instituições. E é por isso que as instituições que eu trabalhei desde que deixei a Galeria de Arte de Joanesburgo foram privadas. O Museu do Apartheid é, na verdade, uma instituição privada. Há dois novos museus de arte abertos na África do Sul recentemente que também são instituições privadas. Não estou dizendo que essas instituições devem ser privadas. Eu estou dizendo que, sim, vamos ver como podemos começar a trabalhar juntos para convencer os governos a dar importância a esse tipo de coisa. É por isso que acho que meu museu de arte, se eu tiver sucesso, talvez seja um modelo para inspirar outros países.
O Museu do Apartheid é mais importante agora do que quando abrimos em 1994, sem dúvida
ATLANTICO — De que forma o Apartheid Museum contribuir para reduzir as desigualdades raciais mundo afora?
Christopher Till — Eu acho que a África do Sul pode ser vista como o laboratório para a discriminação e para o racismo. Como um sul-africano e, principalmente, como um sul-africano branco, posso dizer que minha comunidade dominou e oprimiu outra comunidade. Uma minoria dominou a maioria. E nós somos capazes de mudar isso. E não estou dizendo que é uma história da Cinderela, porque não é. A África do Sul está passando por um período muito ruim. No momento, o racismo é mais vivo e evidente na África do Sul hoje do que em 1994, o que é uma admissão muito triste de se fazer. Há uma polarização novamente e precisamos mudar isso drasticamente. E é por isso que acho que o Museu do Apartheid é mais importante agora do que quando abrimos em 1994, sem dúvida. Então nós estávamos vivendo nessa euforia de como todos nós nos uniríamos e amaríamos um ao outro, e tanto faz. Agora os males sociais estão chegando à superfície.
ATLANTICO — Você acha que é por isso que a exposição sobre Mandela ainda é um produto notável dez anos depois de ter sido lançado? É por causa da nova geração, é a lenda?
Christopher Till — Eu acho que é a lenda. Todo mundo sabe sobre Nelson Mandela. Eles o vêem como um herói. Ele foi o primeiro a dizer “eu não sou um herói”. Ele foi o primeiro a dizer “eu não sou um ícone”. Ele disse: “Eu sou parte de um coletivo, por acaso sou trazido para um espaço de liderança, mas eu represento o meu povo e a luta que meu povo assumiu para mudar”. E agora nos 100 anos deste homem, as pessoas ainda pensam em Mandela. Nós fizemos, em nossos museus, exposições sobre outros líderes, como Oliver Tambo e Steve Biko, que são figuras muito importantes mas não são conhecidas internacionalmente. Mas Mandela é Mandela. Quero dizer, você sabe sobre ele. Mas você não sabe sobre ele realmente.
O uso de tecnologia em museus contemporâneos é vital para poder envolver a geração mais jovem.
ATLANTICO — Você tem o privilégio de compartilhar alguns momentos com Mandela…
Christopher Till — Eu estive com ele em várias ocasiões. Ele não estava bem de saúde naquela época que eu disse “venha ver a exposição que criamos” e ele veio. Mas ele não podia andar muito bem, então eu peguei um carrinho de golfe e o coloquei. E eu o levei até a exposição e disse: “esta é a sua vida, senhor presidente”. E ele não estava interessado em si mesmo. Ele estava apontando as pessoas nas fotos e dizendo “este é…”. Ele estava mais interessado nos outros personagens do que em sua própria história.
ATLANTICO — Como o legado de Mandela pode inspirar os líderes de hoje em todo o mundo?
Christopher Till — Ele era altruísta, seu compromisso genuíno era mudar a vida dessas pessoas para o bem. Ao ponto de que ele estava feliz em morrer por isso. Ele disse isso em seu julgamento. E ele passou 27 anos na prisão, saiu e disse “vale a pena, juntos, somos todos um, este é o nosso país, vamos fazer funcionar”. Infelizmente, agora estamos vendo essa enorme era da corrupção nos últimos 15 anos. É como uma aeronave batendo no chão, tentando puxá-la para cima novamente. E acho que estamos apenas começando a levantar vôo. Mas temos que manter subjacente essa mensagem de outra forma, o que estamos deixando para nossos filhos, nossos netos? Talvez tenhamos falhado. Então eu acho que a mensagem é tão relevante hoje como sempre foi. É mais relevante hoje. E deveria ser um exemplo para os líderes da África. Mas nós temos um longo caminho a percorrer.
ATLANTICO — Quais são as suas memórias sobre o tempo do apartheid?
Christopher Till — Eu acho que a única memória é como o governo criou o construto de propaganda. Por exemplo, uma das maneiras de controlar as pessoas na África do Sul era ter um passe. Se você fosse negro, não era capaz de fazer nada sem o passe. Se você morasse em uma área, não poderia morar em outra área. Então eles controlavam as pessoas. E eu me lembro na minha área, de vez em quando, haviam gritos e pessoas correndo e pulando cercas e tudo mais. E a polícia chegava porque queria verificar os passes. E se você não tivesse o passe, seria preso. Mas, ao crescer, pude ver que isso era loucura. Quando recebemos grupos de crianças em idade escolar, e elas passam pela exposição, elas não conseguem entender por que as separamos na porta. Tudo tem que ser transformado. Mas você tem que começar a entender o que é essa transformação. É um momento de reflexão, é um momento de re engajamento com a luta.
por Caroline Ribeiro e Gustavo Augusto-Vieira