Coordenado pela agroeconomista senegalesa Coumba D. Sow, o programa “1 milhão de cisternas para o Sahel” é uma iniciativa da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) que consiste em implantar sistemas para captar a água da chuva. Isso pode garantir mais qualidade de vida para comunidades que enfrentam longos períodos de seca.
Coumba D. Sow
Coumba é coordenadora do time de resiliência da FAO para as regiões da África Ocidental e do Sahel, que abrange 18 países. Seu principal desafio neste momento é adaptar para a realidade africana o programa criado inicialmente no Brasil.
De seu escritório em Dakar, ela conversou com a equipe da ATLANTICO sobre esse desafio. Segundo ela, já foram feitos pilotos do programa no Senegal, no Níger e em Burkina Faso. Novas experiências estão sendo realizadas no Chade, no Mali e na Gâmbia. Mas isso é só o começo. “Obviamente, o Sahel precisa de mais de 1 milhão de cisternas”, adianta.
Coumba D. Sow com ex-diretor geral da FAO, o brasileiro José Graziano. Imagem: FAO
Coumba D. Sow trabalha na FAO desde 2006, quando ingressou como Diretora de Política Agrícola, apoiando a análise e o desenvolvimento de políticas agrícolas e de segurança alimentar na África, Ásia e América Latina. Ela também apoiou a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD) e contribuiu para o desenvolvimento do Pacto Global do Programa de Desenvolvimento Agrícola da África e dos Planos Nacionais e Regionais de Investimentos Agrícolas em todo o continente. Em 2013, ingressou no Gabinete do Diretor Geral Responsável pela FAO para questões relacionadas à África e abrange o portfólio de Cooperação Técnica e Desenvolvimento Econômico e Social. Desde fevereiro de 2017, Coumba é Coordenadora Regional de Resiliência da FAO para a África Ocidental e o Sahel. Coumba possui um título de mestrado pela School of Food Industries de Montpellier e uma pós-graduação em economia agrícola pela Universidade de Londres.
Vila em Ndiama Peulh, Senegal, Abril de 2019. Imagem: Eduardo Soteras Jalil / FAO.
Como surgiu a ideia de levar o programa brasileiro para o Senegal?
A ideia surgiu em novembro de 2013, durante um evento que discutia a questão da água na região do Sahel. Na ocasião, o presidente do Senegal falou que milhões de milímetros cúbicos de água iam para o mar. Então mudei-me para o Senegal, para escritório sub-regional da África Ocidental no Sahel. E meu trabalho era liderar a equipe de resiliência. Minha missão é garantir que as pessoas aqui tenham água. Chove bastante. Mas depois que a chuva passa, as famílias ficam sem água. Algumas mulheres andam 10 km para encontrar água e outras 10 km para retornar. A maioria delas leva as crianças. Então, as crianças não vão à escola porque precisam ajudar as mães. Visitei muitos países no Sahel: Níger, Mali, Chade, Senegal, Gâmbia. Era o mesmo problema em todos os lugares. Então, lembrei de uma a sugestão do Sr. Graziano. Fui ao Brasil, olhei para as cisternas que eles tinham. Conversei com eles, fiz muitas perguntas e desenvolvi o conceito de 1 milhão de cisternas para o Sahel. Obviamente, o Sahel precisa de mais de 1 milhão de cisternas. Mas a ideia era manter o nome para fazer referência ao programa brasileiro, apenas para criar o vínculo entre África e Brasil.
Mulher beneficiária do programa “1 milhão de cistenas” pega água em uma cisterna em Douly, Senegal. Imagem: Eduardo Soteras Jalil / FAO
Quantas pessoas estão se beneficiando?
É a fase piloto. Nesta primeira fase, construímos 19 cisternas para cerca de 360 mulheres. Construímos pequenas cisternas entre 15 e 20 metros cúbicos, para uma família de cinco pessoas. Eles podem usar a água durante a estação seca, cultivar vegetais e vendê-los para o mercado se tiverem alguns fornecedores. Também construímos cisternas de 50 metros cúbico, para ser usada por associações com cerca de 50 a 60 mulheres juntas. Eles têm algumas terras que usam juntos e poderiam usar vegetais para vender no mercado durante a estação seca. Na temporada normal, eles cultivam cereais. Isso foi no ano passado. Vimos que o projeto piloto é bom. Então, trouxemos pessoas da ASA chegando no Senegal para caminharem juntas conosco. Se o piloto está bom, dissemos “ok, então vamos mudar de escala”. Iniciamos a escalada em 2019, quando chegamos a 20.000 mulheres (no Senegal, Níger e Burkina Faso. E assistimos a mais pilotos, mas muito pequenos, no Chade, no Mali e na Gâmbia.
Como está sendo a aceitação do projeto?
Por enquanto, as pessoas estão muito entusiasmadas com o projeto. Eles realmente querem ver isso crescer, querem que isso se torne um projeto muito grande, uma iniciativa na África.
Vamos falar sobre a adaptação do projeto à realidade do Sahel. O que há em comum com o projeto brasileiro?
O que é muito semelhante é o ecossistema. Digamos que as áreas secas do Brasil, no nordeste brasileiro, sejam semi-áridas como o Sahel. Os agricultores do nordeste do Brasil, há muitos anos, tinham um problema semelhante ao do Sahel, que é a dificuldade para encontrar água. Milhões de animais morriam porque não tinham água. Essa é uma das maiores semelhanças. A segunda semelhança é que na África Ocidental, no Sahel, você tem quase 80% das pessoas que vivem na área rural, que são os agricultores. E esse também é o caso no Brasil. Outra boa semelhança foi o fato de que, no Brasil, as mulheres também se encarregavam de buscar água. No Sahel, em geral, são mulheres que procuram água. Outra semelhança que eu vi: em todas as comunidades, eles tinham a tradição de coletar água. No Sahel, eles costumavam fazer isso em quantidades muito pequenas. Eles nunca pensaram nessas cisternas muito grandes, que podiam coletar muita água.
Placa da cisterna na vila de Douly, Senegal. Imagem: Eduardo Soteras Jalil / FAO
E quais são as diferenças entre as duas realidades?
A diferença é que você poderá coletar mais água no Brasil do que no Sahel. A média de milímetros, metros cúbicos de água, que cai no Brasil, é maior do que no Sahel. Então isso foi um pouco desafiador para nós. Outra diferença talvez seja a organização da sociedade civil no Brasil, pois eles já estavam muito envolvidos na implantação do Fome Zero. Você vê como a sociedade civil, através da ASA, assume a liderança. No oeste africano, tivemos que encontrar a estrutura e as instituições com as quais podemos trabalhar para desenvolver a mesma abordagem. No Brasil o programa de cisternas está dentro de outro programa, que é o Fome Zero. Não é uma iniciativa sozinha. E isso não existe aqui. Uma outra coisa. No Brasil, a casa dos agricultores tem um teto feito de metal. No Sahel, o teto é feito com palha. E para coletar a água, você precisa de algo rígido. Então, construímos um galpão muito grande.
Cultivo de vegetais em uma comunidade do Senegal. Imagem: Eduardo Soteras Jalil / FAO
Que resultados positivos podem ser vistos na região e quais são os próximos passos?
O Senegal adotou algo como o programa “Bolsa Família”. Então fomos selecionar mulheres beneficiárias desse programa. Nós fornecemos cisternas e treinamento. Demos dinheiro a parentes e amigos que trabalham na construção das cisternas. Esperamos criar a mesma condição do Fome Zero, criar o mesmo ambiente para os beneficiários. Seis meses depois, pudemos ver uma grande diferença. A vida deles mudou. Algumas mulheres estavam cultivando vegetais pela primeira vez, estavam produzindo saladas. Eles cultivavam pepinos, cultivavam cenouras, você sabe, qualquer tipo de tomate, e assim por diante. E eles estavam usando para cozinhar. Então a nutrição, mesmo da família, mudou. As crianças estavam comendo pela primeira vez legumes. Eles nem sabiam que esses vegetais existem. Outra coisa que mudou foi o fato de as crianças não procurarem mais água. Todos podem estudar, podem passar tempo com a mãe, ajudam a mãe na jardinagem, a cultivar mais coisas e assim por diante. As próprias mulheres não têm mais que se preocupar em andar quilômetros. Eles podem sustentar suas famílias, cuidar de si mesmos e assim por diante.
Com colaboração de Emanuel de Macêdo