O ano de 2015 é de grande importância para a União Africana. A organização fundada em 2002 Como sucessora da Unidade Africana para ajudar na promoção da democracia, direitos humanos e desenvolvimento econômico na África, apresentou em janeiro deste ano o plano de aplicação para a primeira década da Agenda 2063, um programa de objetivos a longo prazo para o continente. À frente desse trabalho há três anos como presidente da Comissão da União Africana, Nkosazana Dlamini-Zuma está otimista.
“Sim, a Agenda 2063 está relacionada à construção de uma África mais justa e inclusiva, onde nenhum homem, mulher ou criança é deixada para trás”, comemora. O cargo de Dlamini-Zuma permite que ela dedique praticamente todo o seu tempo a pensar no futuro da África e acompanhar de perto a melhoria, ainda que lenta, dos indicadores sociais do continente. “Este crescimento não tem sido transformador, e a pobreza e as desigualdades em larga escala permanecem”, reconhece. precisa enfrentar. “Nosso desafio é garantir que o crescimento seja sustentável, transformador e inclusivo”.
Em conversa com a ATLANTICO, Dlamini-Zuma falou da luta pela paridade de gênero na política e na vida cotidiana, da importância do Brasil para a Cooperação Sul-Sul e também das relações políticas e econômicas da áfrica com China, Europa e Estados Unidos. “Os EUA ainda são o maior investidor no continente africano, mas esses investimentos são principalmente nas indústrias extrativistas, além de ser em poucos países acrescentam muito pouco à diversificação económica e ao desenvolvimento africano”, argumenta.
Considerada um expoente na luta anti-Apartheid na África do Sul e um ícone na luta pela redução das desigualdades sociais no continente africano, Nkosazana Dlamini-Zuma é a primeira mulher ocupar o cargo de presidente da comissão da União Africana. Além disso, pode se tornar a primeira mulher a presidir a África do Sul. São fortes os rumores de uma possível candidatura. Porém, o partido dela só deve discutir o assunto em 2017. Até lá, Dlamini-Zuma se ocupa em tentar desenha o futuro de toda a África. Tema que está no centro de toda a entrevista que pode ser conferida a seguir.
ATLANTICO – Quais são as expectativas da senhora para a redução das desigualdades sociais na África?
Dlamini Zuma – O fim do Apartheid na Namíbia e África do Sul da década do início da década de 1980 sinalizou a conclusão, exceto para o Saara Ocidental, do projeto de descolonização na África. Isto proporcionou oportunidade para uma mudança de paradigma para a então Organização da Unidade Africana, a partir de seu foco principal na luta pela libertação completa, para enfrentar o desenvolvimento do continente. Como resultado, a África fez esforços concertados para resolver conflitos, e o número absoluto de conflitos tem
reduzido drasticamente ao longo das últimas duas décadas, a comissão aprovou a Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (NEPAD) para lidar com seus déficits de desenvolvimento e a Organização de Unidade Africana (OUA) se tornou União Africana (UA). Por mais de uma década, o crescimento econômico coletivo na África tem uma média acima de 5%, com muitos países chegando a dois dígitos, e as reduções dos indicadores
sociais relacionados a saúde materna, HIV e malária e acesso à educação, têm indicado o caminho certo. Os investimentos públicos e privados em infraestrutura de desenvolvimento,
como transportes, energia, TIC, estão crescendo. Muitos países africanos ao longo da próxima década ou passarão para a categoria de renda média. No entanto, este crescimento não tem sido transformador, e pobreza e as desigualdades em larga escala permanecem.
ATLANTICO – Qual é o desafio que se impõe, então?
Zuma – Nosso desafio é, portanto, garantir que o crescimento seja sustentável, transformador e inclusivo. É por esta razão que a União Africana, no início de 2015 adaptou a sua visão de longo prazo à Agenda 2063 no sentido de uma África que está integrada, pacífica, centrada nas pessoas e próspera. No centro da Agenda 2063 estão os investimentos nos povos africanos, especialmente educação e as competências, saúde e o acesso aos serviços básicos. Com mais de 70% da nossa população com idade inferior a 30 anos, a África é um continente jovem, e permanecerá assim durante as próximas décadas. Em 2025 um quarto de todos os jovens menores de 25 anos no mundo estará na África. Esta é uma enorme oportunidade demográfica. Para fazer uso disso, estamos, portanto, com foco na transformação econômica e diversificação das economias africanas, nos afastando da exportação de produtos primários e buscando a produção e adição de valor, incluindo a nossa economia oceânica. Nós também temos uma deficiência enorme de infraestrutura, e a Agenda 2063 tem como objetivo dar impulso à infraestrutura que conecta e integra a África. Nós transformamos as realidades de nossas deficiências em uma oportunidade, para usar a tecnologia, inovação e conhecimento como saltos para o desenvolvimento. Por exemplo, na virada do século passado, todos pensavam que a revolução da tecnologia da informação passaria longe da África, dado os nossos baixos níveis de telefones fixos e infraestrutura. No entanto, hoje, somos o segundo mercado que mais cresce em número de celulares e internet, com inovações originárias da África, tais como M-Pesa.
“NOSSO DESAFIO É GARANTIR UM CRESCIMENTO SUSTENTÁVEL, TRANSFORMADOR E INCLUSIVO”
ATLANTICO – Que avaliação a senhora faz em relação à recente aproximação dos países ricos com o continente africano?
Zuma – A África tem estado sempre no radar dos países ricos, quer por causa dos seus recursos humanos indicados pelo tráfico transatlântico de escravos, quer por seus recursos naturais mostrados pelo colonialismo e neocolonialismo. Durante as duas últimas décadas, temos trabalhado para redefinir a relação entre a África e o mundo. Deixe-me usar dois exemplos. Há uma relação histórica entre a África e a União Europeia, que evoluiu, muitas vezes com dificuldades. Como o nosso vizinho mais próximo e por razões históricas, a Europa continua a ser o principal parceiro comercial da África. Apesar das tentativas da África para diversificar e industrializar suas economias, o interesse da União Europeia na África tem focado principalmente em matérias-primas e comércio. Em nossos compromissos com a UE, incluindo a Cúpula África-EU 2014 e as reuniões entre as Comissões da UA e da UE, a União Africana tem sido muito insistente para que o relacionamento deva ir além disso. Há progressos e contratempos, tais como os Acordos de Parceria Econômica (APE),
que tem o potencial de minar a integração e diversificação africana. Sobre a questão delicada da migração, por exemplo, a nossa opinião é que devemos abordar os fatores que fazem os africanos emigrarem em tão grande número, com a construção de sociedades inclusivas, democráticas e pacíficas e fornecendo oportunidades econômicas e capacitação para os nossos jovens. A UE (e outros parceiros) deve, portanto, trabalhar conosco sobre estas questões, buscando a solução sustentável para os desafios. A União Africana também está fortalecendo suas relações com os Estados Unidos. Tivemos a primeira Cúpula de Líderes África-EUA no ano passado e a visita do presidente Obama à sede da UA, em julho deste ano. Os EUA ainda são o maior investidor no continente africano, mas esses investimentos são principalmente nas indústrias extrativistas, além de ser em poucos países acrescentam muito pouco à diversificação económica e ao desenvolvimento africano. Nós apontamos isso nos compromissos com a administração dos Estados Unidos, incluindo a extensão do acordo AGOA (African Growth and Opportunity Act). Tenho o prazer de dizer que estamos progredindo, com a cooperação em energia através do Power África e do Programa para o Desenvolvimento de Infraestrutura para a África (PIDA), bem como as ações de atração dos investimentos dos EUA para além dos setores extrativistas e assim estabelecendo vínculos com as economias africanas. Estamos também desenvolvendo cooperação nas áreas de paz e segurança, incluindo a luta contra o terrorismo. A África está interessada em diversificar suas parcerias com o mundo. Além de nossas relações com a UE, os EUA, a China e os BRICS, nós também estamos construindo parcerias de trabalho com o Japão, Rússia, Turquia e outros países em todo o mundo, com base em nossas prioridades estabelecidas na Agenda 2063.
ATLANTICO- E a presença da China na África, por exemplo, é boa para o crescimento dos países africanos?
Zuma – A África tem uma longa história com a China, a partir de laços comerciais pré-coloniais até o seu apoio às lutas anticoloniais dos países africanos no período pós-independência. Ao longo da última década, o comércio e o investimento entre a China e África têm crescido, e a China tem investido fortemente no desenvolvimento de infraestrutura – energia, transportes e aviação – no continente. No ano passado, quando o Premier Li Keqiang visitou a sede da UA, nós assinamos um memorando de entendimento com a China em torno do desenvolvimento do transporte ferroviário, infraestrutura rodoviária, aviação e industrialização. Temos discutido com nossos parceiros chineses necessidade de maior foco no beneficiamento e produção africana, de modo que esta relação não se limite apenas à exportação de matérias-primas para a China. Estamos vendo o início desta mudança em países como a Etiópia, onde os chineses cooperam no desenvolvimento da atividade têxtil local. É, portanto, uma relação em evolução, e estamos certos de que está se movendo na direção certa.
“ATÉ 2025, UM QUARTO DE TODOS OS JOVENS MENOS DE 25 NO MUNDO ESTARÃO EM ÁFRICA”
ATLANTICO – Como ter uma posição muito significativa em um continente onde muitas mulheres não são sequer emancipadas? Quais esforços devem ser implementados para dar mais força às ações das mulheres na África? E qual é a importância desse poder para o desenvolvimento do continente?
Zuma – Bem, a África apresenta progressos sobre este ponto também. Na esfera política, embora até este momento, temos somente dois presidentes do sexo feminino (Libéria e Malawi) e alguns primeiros-ministros, há 33 países onde 30% ou mais dos membros do Parlamento são constituídos por mulheres, incluindo Ruanda, que lidera o mundo com 64% de parlamentares do sexo feminino. Quatorze países africanos têm pelo menos 30% dos seus ministérios compostos por mulheres, onde Cabo Verde conta com mais de 50%. Nós achamos que vamos atingir ou estar perto de atingir nossa meta continental de paridade de gênero até 2020. É claro que ainda temos um longo caminho a percorrer, e é por isso que nós celebramos 2015 como o ano do empoderamento das mulheres africanas. Nosso esforço se concentra em reforçar a posição das mulheres na agricultura, com acesso a melhor tecnologia, insumos, como sementes e irrigação, bem como mercados e armazenamento, permitindo o acesso das mulheres ao agro processamento. O modelo patriarcal em muitos países impede as mulheres de possuir e herdar terras e estamos advogando a mudanças nessas leis e práticas, de modo que as mulheres que produzem 70% dos produtos agrícolas africanos tenham poder e assim conduzir a revolução agrária na África. Em todo o continente, as mulheres também se organizam e se mobilizam para sua emancipação econômica, em todos os setores. Temos mulheres empresárias trabalhando para incluir mais mulheres no setor de mineração. Meninas e mulheres melhor educadas significam famílias, comunidades e sociedades mais saudáveis, instruídas e mais produtivas. A África está, portanto, determinada a não deixar de fora metade da sua população.
ATLANTICO – Em 2002, quando era ministra dos Negócios Estrangeiros da África do Sul, a senhora disse que os laços políticos entre Brasil e África seriam estratégicos e fundamentais para o desenvolvimento de mais projetos de cooperação. O que viu acontecer de lá para cá? O Brasil está mais presente na África do que antes? Como se pode medir as atuais iniciativas de cooperação Sul-Sul, como os BRICS, bem como os impactos dessas iniciativas no continente africano? Qual é o papel do Brasil nesse contexto?
Zuma – Estamos de acordo com Ana Cristina Alves, quando afirma que ‘não só o Brasil foi construído sobre o suor e o sangue dos escravos trazidos da África ocidental ao longo das eras colonial e imperial, mas a herança desses escravos imprimiu fortes nuances africanos no Brasil moderno’. Para este dia, a dimensão africana continua a ser muito robusta e evidente no Brasil, ou seja, por meio de sua genética, cultural, folclore, música, religião,literatura e culinária, e o legado linguístico.Esta ligação umbilical com o Brasil, como temos com os povos do Caribe, é uma base importante para a amizade e solidariedade entre
Brasil e África. De fato, nós presenciamos e comemoramos muito sutilmente suas realizações, e sabemos que o inverso é verdadeiro. O Brasil e os países africanos têm trabalhado em estreita colaboração para garantir a promoção da relação Sul-Sul, através de fóruns como o G77 e o G20, bem como BRICs. Através destes esforços conjuntos, estamos garantindo uma voz mais aguda aos países em desenvolvimento nos fóruns e negociações internacionais, notadamente em questões como as alterações climáticas, comércio e desenvolvimento.
ATLANTICO – A senhora ocupou vários cargos no governo da África do Sul e tem um vasto conhecimento sobre os desafios do país. Quais são seus planos quando deixar a União Africana?
Zuma – Foi um grande privilégio servir por mais 18 anos como ministra da Saúde (1994-1999), Negócios Estrangeiros (1999-2009) e Assuntos Internos (2009-2012) da África do Sul durante um crítico período formativo da sua história. A África do Sul este ano comemora 21 anos desde a sua transição do regime do Apartheid, e o país tem alcançado grandes feitos. A liderança do país, incluindo a minha organização, o ANC, deu-me a tarefa de servir nesta posição como Presidente da Comissão da União Africana. Esta tarefa ainda não está concluída.
ATLANTICO – A senhora planeja disputar as eleições e se tornar a primeira mulher presidente da África do Sul?
Zuma – A minha organização, o ANC através da sua estrutura irá decidir sobre a presidência em sua Conferência em 2017. Concordo com a posição tomada pelo ANC League Feminina que é o momento para a África do Sul eleger uma mulher para a presidência do país. Temos muitas mulheres capazes, incluindo muitas que serviram no governo e outras instituições ao longo dos últimos 21 anos da nossa democracia.
ATLANTICO – A senhora vê progresso no sentido da democratização do continente? Como o legado de Nelson Mandela inspira democracia na África?
Zuma – Até o final de 2015, nós teremos realizado mais de quinze eleições no continente, a maioria pacífica, incluindo na Nigéria, onde tivemos uma mudança de partido. No próximo ano teremos eleições em 20 outros países africanos. A maioria dessas eleições é democrática, caracterizando-se como a terceira ou quarta eleições multipartidárias desta natureza. Temos a Arquitetura de Governança Africana para garantir que continuemos a melhorar a democracia e as ações dos governos no continente. Há desafios, como o debate em curso sobre limites do mandato presidencial, mas estamos fazendo progressos positivos. Nelson Rolihlahla Mandela é um ícone africano e global, não só pelo seu compromisso com a democracia, mas o seu compromisso para com a humanidade, a diversidade, a reconciliação e a liberdade. A África continua a ser inspirada por sua liderança.
ATLANTICO – Como a senhora vê o futuro da África?
Zuma – Eu sou muito positiva. Sim, temos desafios, mas a liderança africana e os cidadãos, especialmente os jovens e as mulheres, estão determinados a serem as gerações que construirão e sustentarão uma trajetória diferente para o nosso continente. Sabemos que, como disse Madiba, “somente depois de subir uma grande colina, é que se apercebe que há muito mais montanhas para escalar”, e que será uma realidade para o nosso desenvolvimento também. Então, nós estamos num voo de longa duração.
PERFIL
Nkosazana Dlamini-Zuma tem longa experiência na vida pública. Na África do Sul, foi ministra da Saúde, de Negócios Estrangeiros e também de Assuntos Internos, nos governos de Nelson Mandela, Thabo Mbeki , Kgalema Molanthe e Jacob Zuma, seu ex-marido. Dlamini-Zuma é a mais velha de oito filhos. Nascida em KwaZulu-Natal no ano de 1949, estudou Zoologia e Botânica até obter a Licenciatura em Ciências na Universidade de Zululand. Depois, se dedicou ao estudo de medicina. Em paralelo aos estudos, na década de 1970, se envolveu com o Congresso Nacional Africano (ANC), até então um partido clandestino. Em 1976, já eleita vice-presidente da Organização dos Estudantes Sul-Africanos, teve que fugir para o exílio. Por conta isso, precisou concluir os estudos na Grã Bretanha. Depois, atuou como médica na Suazilândia, onde conheceu seu futuro marido, atual presidente da ANC, Jacob Zuma, com quem esteve casada entre 1982 e 1998 e com teve quatro filhos.