“Intuitivamente, percebi que tinha alguma coisa nessa história que diz respeito a história de todos nós”, compartilha Eliana Alves dos Santos Cruz ao falar de seu livro “Água de Barrela” que conta a trajetória da sua família.  Eliana, 54, é escritora, jornalista e produtora cultural no Rio de Janeiro. Através de pesquisas e relatos familiares – especialmente de sua tia, Dona Nunu, a autora constrói uma narrativa que traça o caminho que liga o Brasil à África. Eliana defende o ensino, a pesquisa e a escrita como forma de preservar a cultura afro brasileira. 

“Precisamos resgatar a África para a nossa vida”

“Precisamos resgatar a África para a nossa vida”, afirma. Ela diz que é dessa forma que estereótipos a respeito do continente são quebrados, quando brasileiros entram em contato com suas origens . A escritora também aplaude a tradição da história oral, e como apesar das tentativas de ocultação de culturas afro brasileiras, “essas verdades,  esses conhecimentos saem desses esconderijos”. 

Eliana também afirma que precisamos trazer a oralidade para o terreno da escrita para que a nossa história “entre na corrente sanguínea da cultura brasileira de uma forma mais efetiva.” “Precisamos documentar para que isso fique para a posteridade”, conta.

Além de Água de Barrela, a escritora possui ainda mais dois romances históricos” “O crime do cais do Valongo”, lançado em 2018, e “Nada digo de ti, que em ti não veja” que deve ser lançado em abril deste ano. Ela acredita que através da literatura é possível fazer com que a história de um país atinja um público maior, além de discutir assuntos que são atuais, como as questões LGBTQ+ e as fake news. Enquanto isso, ela incentiva que as pessoas leiam mais autores negros brasileiros, pois acredita que isso contribui para formar leitores com maior senso crítico e com uma visão mais completa da cultura afro-brasileira. 

ATLANTICO – Como surgiu a ideia de escrever sobre a história da sua família? 

Eliana Alves Cruz – Eu sempre falo que esse é um livro da vida toda. Eu sempre quis escrever essa história. Porque intuitivamente, percebi que tinha alguma coisa nessa história que diz respeito a história de todos nós. E que não tinha ainda sido ainda devidamente contada, que ainda tinha coisas ali para revelar. Então eu sempre perguntei, questionei, conversei e fui colecionando essas histórias ao longo da vida. Mas aquela coisa né, a gente vai adiando os planos. Aquilo vai se tornando uma coisa distante. Muito por conta também do mercado editorial que não nos absorve de forma suficiente, melhorou um pouco, mas não muito. Até um dia eu falei, vou tentar, e fui mas muito mais como uma questão pessoal mesmo. Óbvio que o sonho é publicação, mas eu queria concluir esse mapa para deixar para os filhos. E aí fui pesquisando, pesquisei a região toda, voltei nas pessoas que ainda estão vivas e que podem trazer informações. Peguei outros dados, colecionei documentos de família, fui vendo certidões, uma série de documentos, fui em arquivo público, pesquisei na internet, enfim usei todos os recursos que estavam ao meu alcance para tentar montar esse quebra cabeça. E surpreendente consegui um bom material. Coletei bastante coisa, muito porque tem uma pessoa na minha família, que é minha tia-avó, Dona Nunu, que foi a chave para tudo. Ele foi diagnosticada com esquizofrenia, e aí as pessoas não davam muito crédito pra ela. A partir do momento que fui até ela, vi que ela tinha uma memória preservada impressionante. Confirmei várias informações que ela me deu com acadêmicos, assim como em documentos, escutei o máximo que pude dela e montei a história. 

Foto:  Bisavó de Eliana, Damiana, filha de Martha, neta de Anolina, bisneta de Ewa e personagem de “Água de barrela”

ATLANTICO – Você fala sobre a contribuição da Dona Nunu para o resgate da história da família. Com isso, toca em um fator importante que é o apagamento de formas de conhecimentos diversas e o adoecimento de populações que sofrem opressão. Como acredita ser possível resgatar essas formas de conhecimento?

Eliana Alves Cruz – Na verdade é um conteúdo que o Brasil bota pra debaixo do tapete. Não é um apagamento, é uma ocultação, porque aquilo a gente não consegue apagar. Tá em nós, está na nossa cultura mas o Brasil tenta esconder ao máximo. Mas não adianta [esconder] porque essas verdades, esses conhecimentos, saem desses esconderijos . A tentativa de apagamento é constante existe até hoje. E hoje vivemos um momento muito difícil do país em que vemos retroceder pensamentos, se tornando quase medieval com relação a tantas coisas. Mas embora tenha esse perigo forte, nós sobrevivemos há mais de 4 séculos, e não vai ser agora isso que isso vai ser apagado. Mas precisamos estar sempre vigilantes. Nós precisamos documentar para que isso fique para a posteridade. Temos uma forte tradição de história oral, aquela coisa bem africana, que vai passando de geração em geração com histórias que vão sendo contadas. Mas vivemos em uma cultura da escrita, precisamos trazer isso também pro terreno da escrita para que entre na corrente sanguínea da cultura brasileira de uma forma mais efetiva. 

ATLANTICO – De que forma é possível para os brasileiros entrarem em contato com sua herança afro descendente?

Eliana Alves Cruz – Eu acho que a gente tem que partir do macro pra vir pro micro. Primeiro precisamos resgatar a África para a nossa vida. Na escola estudamos tudo da Europa e nada da África. Não sabemos que continente é esse. Temos muito estereótipos na cabeça fomentado constantemente pela mídia. A gente já deu muita atenção pro outro lado do mundo. 

“A gente já deu muita atenção pro outro lado do mundo”

O passo número dois é olhar pra nossa história pessoal. Tentar saber minimamente de onde vieram nosso pais, nossos avós, nossos bisavós. Às vezes a gente só precisa de um pedacinho de linha pra achar o novelo inteiro, que foi o que o aconteceu comigo. A partir do momento que fui nessa minha tia e ela me deu esse pedacinho de linha, ela me deu uma região da África, e eu fui estudar aquela região e assim me deu o novelo inteiro. Estudando aquela região da África eu entendi o movimento de imigração pra cá, entendi como foi a escravização pra cá, e aí eu fui montando e trazendo coisas. 

Toda família negra no Brasil em algum momento foi escravizada. Então eu, por acaso, tinha como saber quem nos escravizou. E foi uma família que se relacionava com a minha até agora o início dos anos 2000. Eu me perguntava de onde minhas avós e bisavós conhecem esse pessoal. Pesquisei sobre as origens deles, em cartórios e in loco na região que descendiam. Com os documentos da minha própria família, via antepassados com o mesmo sobrenome, então eu matei a charada. 

ATLANTICO – Como essas informações impactaram você e sua família?

Eliana Alves Cruz – Quando comecei a pesquisar senti que eles ficaram céticos, mas fui fazendo. Em uma certa altura uma das minhas tias viu que as coisas eram sérias e começou a me fornecer material, abriu os baús. Minha família recebeu com surpresa, mas eles apoiaram, ficaram muito emocionados. É uma obra da qual sentem muito orgulho. 

ATLANTICO – Existe atualmente um grande esforço por parte do movimento negro brasileiro de resgatar a história do Brasil afrodescendente. Isso inclui a promoção de escritores que trabalham com assuntos relacionados ao tema. Como você vê essa movimentação? 

Eliana Alves Cruz – Eu acho que é muito bom. Temos que procurar remontar esse passado, porque todo o nosso futuro tá um pouco intricado pela lacuna que ficou por esse passado contado apenas por um lado. É como se a gente quisesse curar uma doença grave sem a devida medicação. E não é assim que as coisas acontecem. Então se queremos realmente ter alguma perspectiva de futuro precisamos ter esse passado muito bem explicado na nossa cabeça. 

“Se queremos realmente ter alguma perspectiva de futuro precisamos ter esse passado muito bem explicado na nossa cabeça”

ATLANTICO – E que outros escritores e obras você recomenda para conhecer a produção afro-brasileira?

Eliana Alves Cruz – Tem um montão de gente. Eu recomendo tudo do Nei Lopes. Absolutamente tudo dele: são uns 40 livros. Mas tem um em especial: “Bantos malês e identidade negra”. Recomendo um, que é um clássico, chamado “Um defeito de cor”, da Ana Maria Gonçalves. Mas agora falando de romances, tem muitas escritoras incríveis, como a Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, com obras muito essenciais. Mirian Alves também, uma romancista e poeta paulista muito boa.  Tem um site chamado literafro, da Universidade Federal de Minas Gerais, que tem organizadinho, em ordem alfabética, todos os autores negros brasileiros homens e mulheres, com perfil, dados biográficos e sua obra. Está ali pra quem quiser com um clique. Quem me dera na minha época de jovem adolescente, ter algo assim. Eu só fui tomar conhecimento dessa literatura afro brasileira já adulta. 

Foto: Eliana Alvez Cruz

ATLANTICO – De que forma entender suas origens e história influenciou seus trabalhos posteriores ao “Água de barrela”?

Eliana Alves Cruz – Ao longo da escrita desse livro percebi toda a lacuna que existe em relação à isso: nossa história miúda, do cotidiano e das famílias. Isso falando de literatura, tirando da historiografia, da academia, de uma forma geral. Então percebi que eu poderia contribuir bastante. Tenho essa aptidão de transformar em literatura uma pesquisa acadêmica. As pessoas estão lendo uma pesquisa e elas nem se dão conta disso, pra elas estão lendo uma história. É o caso do “O crime do cais do Valongo” que é uma história que se passa no fim do século 18 pro começo do século 19, e tem uns personagens que estão aqui no Brasil e outros na África. Tem um realismo fantástico, um crime, então os jovens adoram. Descobri que existe um filão aí muito pouco explorado. Ainda tenho muito o que falar, tenho muito o que escrever. Mas isso  não me impede também de escrever outras coisas contemporâneas. É apenas um projeto literário que pra mim é importante e considero que seja relevante também pro nosso país. 

Foto: Malê Editora

ATLANTICO – Você está trabalhando em algo atualmente?

Eliana Alves Cruz – Sim. Em abril vou lançar outro romance histórico chamado “Nada digo que em ti não veja”. Quando escrevi “O crime do cais valongo” tinha um personagem homossexual e fiz uma pesquisa sobre homossexualidade do Brasil Império. Achei que aquilo dava um livro mas não queria botar naquele pois iria enveredar para outra coisa. Eu como sou uma pessoa muito inquieta também tem muita coisa que quero fazer, como uma sequência pro “Água de barrela”, uma história que caminha paralela àquela ali.

Share:

administrator