Referência como pesquisadora e atuante no movimento negro brasileiro, a pedagoga Nilma Lino Gomes ocupa hoje uma posição de destaque no Brasil. Mineira, natural de Belo Horizonte, ela hoje comanda a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, a Seppir. No cargo desde o início do ano, Nilma está na linha de frente da luta pela superação do racismo e diminuição das desigualdades raciais. Apesar dos muitos avanços no que diz respeito à redução das desigualdades sociais como um todo, o Brasil está longe de ter uma democracia racial. Segundo um estudo divulgado em 2014 pela ONU, os negros brasileiros são os que mais são assassinados, os que têm menor escolaridade, menores salários, maior taxa de desemprego, menor acesso à saúde, são os que morrem mais cedo e têm a menor participação no Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, são os que mais lotam as prisões e os que menos ocupam postos nos governos.

Para reverter esse quadro, Nilma Lino Gomes conta com o apoio dos movimentos sociais e das chamadas “mídias negras”, como ela conta à ATLANTICO na entrevista a seguir. Em seu trabalho, ela assume uma postura de líder aberta ao diálogo, sensível aos anseios da população e que acompanha com cuidado os movimentos recentes existentes nas redes sociais digitais que, segundo ela, apesar de facilitar a democracia também abre espaço para manifestações preconceituosas, algumas inclusive criminosas. Nesta conversa, ela fala ainda sobre os desafios para disseminar os ideais de uma democracia racial num país tão complexo como o Brasil, aponta os mecanismos existentes para fortalecer as políticas públicas de igualdade racial e defende a educação como arma para criar novas valores nas gerações futuras.

ATLANTICO – Qual é o atual panorama da questão da igualdade racial no brasil?

Nilma Lino Gomes – O racismo é um fenômeno extremamente complexo. Tanto ele como a discriminação racial, eu sempre tenho dito que eles incidem de uma forma diferenciada de acordo com o contexto que nós vivemos, com a história, de acordo com renda, escolaridade, com gênero, por idade, por orientação sexual. Essa incidência não significa menor ou maior grau. Mas sim é uma forma diferenciada do racismo se expressar. Então no ministério nós enfrentamos o grande desafio de lidar com esse fenômeno e superá-lo através das políticas de promoção da igualdade racial. Então, recentemente nós tivemos vários casos de crimes de desigualdade racial no Brasil, de ofensas raciais. Nós temos visto, inclusive, esse racismo se alargar através das mídias sociais, pelas redes sociais. Ao mesmo tempo que essas novas mídias são formas dos movimentos sociais também se expressarem elas têm sido lugares de outros grupos que têm posições, vamos dizer assim, antidemocráticas se expressem também. Então nós temos hoje o desafio de garantir a política de promoção de igualdade racial e lidar com esses diferentes universos que as sociedades modernas vivem hoje – o Brasil é uma delas – tanto como a vida off-line quanto com a vida online. Então é um papel de reeducação o tempo inteiro. O ministério tem um papel educativo e reeducativo, além de político.

ATLANTICO – O que o Brasil tem feito para diminuir essas desigualdades?

Nilma – Nos últimos doze anos no Brasil nós temos construído políticas públicas específicas. Nós temos duas situações inovadoras que eu vejo. Uma é a produção de dados através de pesquisas que são feitas tanto por instituições de ensino superior como pelo próprio governo federal, através dos órgãos de pesquisa e de monitoramento que nós temos. E essas pesquisas têm revelado desigualdades raciais no Brasil juntamente com outras formas de desigualdade. E, ao mesmo tempo, elas também nos auxiliam a avaliar os avanços que já fizemos ao longo desses doze anos na superação desse quadro. Então esse é um aspecto que eu considero importante que é a geração de estudos e pesquisas oficiais e o outro aspecto que é a própria existência das políticas públicas, inclusive de legislações em nível nacional que visam também diminuir essas desigualdades. E uma delas que eu poderia citar é o Estatuto da Desigualdade Racial, que completa cinco anos no dia 20 de julho. Ela é uma legislação muito importante, pois ela ratifica a Constituição Federal, aprofunda as questões de promoção de igualdade racial e luta pela superação das desigualdades e dá orientações para estados, municípios e Distrito Federal na construção dessas políticas.

ATLANTICO – A senhora pode apontar alguma peculiaridade das desigualdades raciais que existem no Brasil se compararmos com as desigualdades existentes em outros países?

Nilma – Cada país vive o seu contexto  histórico, cultural, político, econômico. Acho que aqui nós temos algumas peculiaridades quando comparamos o Brasil com outros países que também apresentam desigualdades raciais. A primeira questão a considerar é que o racismo é um fenômeno global, lamentavelmente. Ele não acontece só aqui no Brasil. Ele está presente em outras sociedades e incide sobre outros grupos étnico-raciais e que muitas sociedades têm lutado para superar esse fenômeno.No nosso caso, nós temos uma característica muito peculiar que é o que vários antropólogos já denunciaram e tentaram compreender que é a ambiguidade do racismo brasileiro. Nós vivemos em um país em que o racismo se afirma a partir de sua própria negação. Quanto mais se nega que existe racismo no Brasil mais esse racismo consegue se propagar. E uma maneira de se contrapor a isso ou de criar interrupções nesse processo tão contínuo e tão histórico é justamente a intervenção do Estado e a construção de políticas públicas visando a superação do racismo como também a superação das desigualdades raciais. E acho que é nesse contexto que a Seppir existe. Ela existe como um órgão dentro do Governo Federal com o objetivo de construir as políticas de promoção de igualdade racial em articulação com os outros ministérios, com a sociedade civil, movimentos sociais, e principalmente com um diálogo com os estados, municípios e Distrito Federal para que essas políticas não fiquem só na esfera do Governo Federal, mas que elas sejam políticas de Estado e sendo de Estado elas estejam presentes no Brasil como um todo.

ATLANTICO – De que forma a representatividade de negros e negras dentro de espaços de poder, como o Congresso Nacional ou nas prefeituras, pode ajudar a diminuir o preconceito no Brasil? A senhora acredita que essa representativa pode ajudar a eliminar o racismo?

Nilma – Sim, tenho certeza que ajuda porque a representatividade de negros e negras nos espaços de poder, nos espaços do legislativo ou mesmo do executivo, na sociedade de uma forma mais ampla, em lugares que não sejam somente lugares de subordinação que lamentavelmente a sociedade quase que está acostumada a ver. Então a representatividade nesses outros espaços ela é muito importante para que o Brasil garanta a grande diversidade étnico-racial que nos constitui em todos os nossos espaços, principalmente nos espaços de poder e decisão. Então, por isso, as ações afirmativas são medidas políticas tão importantes porque significam uma forma, principalmente a modalidade de cotas, de construir igualdade de oportunidades, e construir uma igualdade de direitos e termos os diferentes segmentos étnico-raciais do Brasil convivendo na mesma horizontalidade nos diferentes espaços, inclusive nos espaços acadêmicos, de produção do conhecimento e os espaços de poder. Então essa representatividade ela é muito salutar. Viver a diversidade ela é muito salutar. E é muito importante para todo e qualquer país principalmente em um país tão diverso como o Brasil.

ATLANTICO – O que dizer então para aquela parcela da população que se diz contra essas políticas afirmativas?

Nilma – Eu primeiro acredito que muitas vezes as pessoas se posicionam contrárias até mesmo por um grande desconhecimento do que são essas políticas. Penso que a sociedade brasileira e aqueles que se manifestam contrariamente deveriam conhecer mais a nossa história e conhecer mais a nossa história política do Brasil para compreender o que hoje nós fazemos como por exemplo ações afirmativas, as diversas formas de promoção da igualdade racial faz parte da garantia de direitos e que essas ações afirmativas são políticas públicas e privadas também que tem como objetivo correção de desigualdades históricas que incidem sobre determinados grupos. Então hoje na sociedade brasileira não se pode negar que essas desigualdades raciais existem, que elas caminham lado a lado com as desigualdades sociais, que também temos desigualdade de gênero no Brasil e se nós, hoje, como sociedade, reconhecermos e tivermos conhecimento dessa situação, penso que o Brasil de todo cidadão e toda cidadã deveria se irmanar de todo e qualquer luta de superação desse quadro. Então falta muitas vezes um conhecimento mais profundo do que sejam essas políticas por parte de muitas pessoas que se mostram contrárias, mas com argumentos muito simplistas. Argumentos que chegam a ser até mesmo vazios e pautados muitas vezes no preconceito, num sentido mesmo de uma pré-concepção sem antes aprofundar sobre aquilo que de fato significa a adoção dessas políticas.

ATLANTICO – E dentro desse contexto, qual a importância da lei que estabelece a inclusão de história da cultura afro-brasileiro no currículo escolar?

Nilma – A importância dessa lei é que ela surge em 2003 também, na mesma época em que nosso ministério é criado e ela surge como uma alteração da nossa lei de diretrizes e bases da educação nacional. E isso é muito importante. Ou seja, o ensino de cultura da história afro-brasileira e africana, bem como a educação das relações étnico-raciais do Brasil faz parte da nossa lei nacional da educação. Não é uma lei específica, não é uma lei para negros como muitas pessoas costumam dizer, mas é uma lei para toda nossa sociedade, para todas as escolas de educação básica, públicas e privadas. A importância dessa legislação, na minha opinião, é que ela é uma forma muito inteligente de combater o racismo, porque ela atua de uma forma, vamos chamar assim, preventiva, do que uma forma punitiva, como muitas vezes a sociedade costuma agir. E também acho que ela é uma medida pedagógica muito eficaz porque ela investe na formação das novas gerações.

ATLANTICO – Essa mudança na legislação e a criação da Seppir coincidiram com uma maior aproximação política e cultural do Brasil com os países do continente africano. Como a senhora avalia essa aproximação? O que o Brasil pode aprender com a diversidade étnica–cultural do continente africano?

Nilma – Nesses últimos doze anos a nossa relação com o continente africano tem mudado principalmente no contexto de cooperação Sul-Sul, uma outra forma de cooperação internacional, mais igualitária, mais democrática, uma forma de cooperação que entende que o outro continente com o qual nós lidamos e os países que fazem parte dele também produzem conhecimento, riqueza, cultura e que também têm muito a nos ensinar. Então é uma relação mais horizontal, digamos assim. O Brasil tem muito a aprender com o continente africano e o continente africano também tem muito a aprender com o Brasil numa relação que não seja autoritária, numa relação que seja democrática. Acho que esse é o primeiro aspecto. Num segundo aspecto, eu acredito que essa aproximação nos ajuda a compreender de fato a diversidade, a riqueza e a complexidade do continente africano. Enquanto isso acontece, nós temos a grande possibilidade da superação de estereótipos, que foram construídos na nossa sociedade, que ainda são construídos sobre o continente africano, suas populações, sua economia, sua cultura, as etnias que formam os países, inclusive sobre sua história. Tanto a história de colonização como a história das lutas pela libertação e hoje o grande desafio da construção das sociedades democráticas desse continente. Essa aproximação também tem desafios, como por exemplo da ordem econômica, de que tipo de relação econômica o Brasil vai estabelecer com os países do continente africano e ela nos ajuda, na minha perspectiva, a entender melhor as formas por meio das quais o continente africano vem lidando com sua própria diversidade e também como vem lidando com as desigualdades que existem nesses países e que os governos democráticos têm também lutado para poder superar. Então, acho que é uma relação de troca. É importante essa relação de troca. Mas volto a frisar, o que eu acho mais interessante é que essas relações

Documento de Referência

A SEPPIR utiliza como referência política o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), que orientou a elaboração do Plano Plurianual (PPA 2012-2015), resultando na criação de um programa específico intitulado “Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial. Resultou também na incorporação desses temas em 25 outros programas, totalizando 121 metas, 87 iniciativas e 19 ações orçamentárias, em diferentes áreas da ação governamental.

Perfil

Pedagoga, mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra, Nilma Lino é docente do quadro da UFMG e pesquisadora das áreas de Educação e Diversidade Étnico-racial, com ênfase especial na atuação do movimento negro brasileiro.

A titular da SEPPIR foi a primeira mulher negra a chefiar uma universidade federal ao assumir o cargo de reitora pro tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro- Brasileira (UNILAB), cargo que ocupou desde abril de 2013. Além disso, Nilma Lino Gomes integra o corpo docente da pós-graduação em educação Conhecimento e Inclusão Social – FAE/UFMG e do Mestrado Interdisciplinar em Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis (UNILAB). Foi Coordenadora Geral do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Ações Afirmativas na UFMG (2002 a 2013). É membro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), da qual foi presidente entre os anos 2004 e 2006. A ministra da SEPPIR também integrou a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (gestão 2010 – 2014), onde participou da comissão técnica nacional de diversidade para assuntos relacionados à educação dos afro-brasileiros.

A Secretaria

Criada em março de 2003, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial nasce do reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro brasileiro. A data é emblemática, pois em todo o mundo celebra-se o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU), em memória do Massacre de Shaperville. Em 21 de março de 1960, 20.000 negros protestavam contra a lei do passe, que os obrigava a portar cartões de identificação, especificando os locais por onde eles podiam circular. Isso aconteceu na cidade de Joanesburgo, na África do Sul. Mesmo sendo uma manifestação pacífica, o exército atirou sobre a multidão e o saldo da violência foram 69 mortos e 186 feridos.

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