O guineense Vensam Iala sonhava em ser jogador de futebol. Na infância, sempre ouvia o pai falar do Brasil, consagrado por seu futebol e  por jogadores como Pelé. Aos 17 anos, o sonho dele foi interrompido quando fraturou a clavícula, o que impedia a sua profissionalização como atleta. Porém, o fascínio pelo Brasil persistiu. E em 2010 Vesam pode realizar o desejo de conhecer o país. Ele se mudou para a cidade de Assis para estudar Letras na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp).

No Brasil há 9 anos, e ainda sem cidadania brasileira, Vensam enfrentou o racismo, algo até então algo novo para ele. Para além das experiências negativas, ele também se envolveu em diversas causas, e começou uma nova carreira como ator e modelo. Atualmente, aos 30 anos, é formado e possui um diploma de especialista em literaturas africanas de língua portuguesa. É também ativista social nas causas migratórias, como membro do Promigra, um projeto que trabalha para promoção de direitos dos migrantes e da ONG África do Coração. Também já ministrou aulas de português para imigrantes na ONG Missão Paz, uma instituição de apoio e acolhimento a imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo.

Em dezembro de 2018 sua vida mudou de cabeça para baixo ao vencer o primeiro concurso Mister África Brasil, que elegeu em o mais belo imigrante africano do Brasil. Hoje trabalha como modelo e ator. Muito em breve, o seu trabalho poderá ser conferido nas telas de cinemas de todo o Brasil. Ele faz parte do elenco do filme “Pedro”, que conta a visão do imperador brasileiro Dom Pedro I e traça um paralelo com o cenário político atual brasileiro. Estrelado por Cauã Reymond, o longa é dirigido pela cineasta Laís Bodanzky, diretora e roteirista de filmes famosos no Brasil, como “O Bicho de Sete Cabeças” e “Como os Nossos Pais”.

Como foi sua vinda ao Brasil?

Minha vinda ao Brasil se deu através do PEC-G, em 2010. Ora, o desejo de conhecer Brasil foi alimentado pelo meu então sonho de ser jogador de futebol e o Brasil é referência mundial no esporte.

O Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) oferece oportunidades de formação superior a cidadãos de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais. Desenvolvido pelos ministérios das Relações Exteriores e da Educação, em parceria com universidades públicas federais, estaduais e particulares.

Além de São Paulo, você conheceu outros estados brasileiros? Morou em outros lugares do país?

Sim, conheço algumas cidades de estados como Rio de Janeiro, Santa Catarina, Mato Grosso, Minas Gerais e Paraná. Morei em Assis, uma cidade pequena do interior do estado de São Paulo.

Você diz que se descobriu negro e conheceu o racismo estrutural no Brasil. O que isso quer dizer? Como tem lidado com essa questão?

Sim, eu me descobri negro no Brasil porque aqui o racismo institucional é velado só para os brancos, mas aos pretos é escancarado. Só andar nos espaços de poder e ver que eles não têm cor e que essa cor não é a daqueles com as quais eu me identifico. O sistema ou estado ainda vê o negro como escravo. Essa é uma realidade muito distante da minha porque a forma como a construção da minha identidade se deu (uma luta de libertação para expulsar os invasores portugueses e por meu país ser esmagadoramente negro) é muito diferente da forma como se deu para os meus irmãos afro brasileiros. Aqui, por exemplo, é um dos últimos países a abolir a escravidão, os espaços de poder têm cor, os empregos tem cor e que não é a do meu povo. Tudo isso é o reflexo da escravidão. São algumas dessas coisas que me fizeram descobrir negro. O movimento negro me ajudou muito a entender um pouco mais esse processo delicado e complexo e a entender também o meu lugar de fala enquanto negro africano.

Nos últimos anos tem aumentado o interesse de brasileiros sobre sua origem africana, principalmente por parte da população negra do país. Como você vê isso?

Isso é algo muito positivo. O povo que não conhece o seu passado dificilmente entenderá o seu presente e não saberá almejar seu futuro. Durante séculos, a nossa história foi contada a partir do navio negreiro. Nossa história foi negada, deturpada e inventou-se uma história de humilhação que nos envergonhava. Mas vale ressaltar que essa busca pela ancestralidade é de muito tempo. Muitos dos nossos foram mortos nessa busca. Cito Dandara, entre outros, para que hoje esse interesse aumente. Agora nós seremos o protagonistas da nossa história e poderemos compartilhá-la com nossos irmãos de cá e vice-versa.

Como resolveu se tornar ator e como tem sido sua experiência? E quais seus planos pro futuro?

Na Guiné-Bissau fiz teatro um tempo na igreja, depois parei porque a minha praia era mesmo jogar bola. Depois vim aqui estudar Letras. Terminei com a sensação de que me falta alguma metodologia para ir à sala de aula e fiquei naquilo. Daí me surgiu a moda que, consequentemente, me trouxe a atuação. Participei de uma longa a convite de uma diretora que gostou da minha performance e eis que me descubro dentro do set. Meu plano agora é aperfeiçoar ainda mais e seguir minha carreira artística, quiçá me tornar um grande ator guineense como Welket Bungé, uma de minhas referências. Porém, minha luta pela causa migratória e do refúgio é minha bandeira para a vida também.

Em que acha que Brasil e Guiné-Bissau se assemelham e se diferenciam?

Temos várias semelhanças, mas quero destacar uma que é a língua oficial portuguesa que temos em comum. E o que nos diferencia, além do racismo estrutural, consiste no fato de que nós conseguirmos preservar e manter viva todas as línguas nativas dos grupos étnicos do país. Temos, inclusive, uma língua nacional, o crioulo guineense, diferentemente do Brasil. Não é uma crítica e sim, uma constatação.

O que acha que as pessoas deveriam conhecer de Guiné-Bissau?

Acho que deveriam conhecer o Arquipélagos dos Bijagós, considerado, desde 1996, reserva da biosfera, pela Unesco. Composto por 88 ilhas, muitas não são povoadas. Olha, sou suspeito de falar, portanto, provoco-vos a conhecer esse lugar rico cultural e ambientalmente.

Você costuma visitar Guiné-Bissau? Aliás, pretende voltar a morar lá?

Dos 9 anos que vivo cá, só consegui ir duas vezes. A última foi em 2016. Como dizemos em crioulo guineense: “ i lá ku nha biku nteradu”. Numa tradução literal, significa “ é lá que o meu cordão umbilical foi enterrado”. Para nós, onde seu cordão for enterrado é onde seu corpo deve enterrado também e, por isso, sim, eu voltarei para dar a minha contribuição para o desenvolvimento do meu país até onde a vida me permitir.

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