“Sou porque somos todos nós”. A frase resume o conceito do Ubuntu, um fundamento filosófico que surge no continente africano e que agora ganha adeptos no Brasil e em vários outros países, influenciando movimentos sociais, partidos políticos e profissionais das mais diversas áreas. A origem da expressão Ubuntu remete aos idiomas falados por diversos povos de nações da África Subsaariana, como os bantus. Contudo, a noção de Ubuntu ganha notoriedade durante a luta contra o Apartheid na África do Sul, inspirando Nelson Mandela a promover uma política de reconciliação nacional.
“Diferente da visão de modernidade que implica na destruição da tradição, Mandela vai se basear nas tradições para criar um novo modelo, onde uma pessoa só será feliz se a outra também for”, explica o historiador Paulino de Jesus, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. “Mandela dizia que só existe a riqueza de uma pessoa se o que ela faz enriquece outras pessoas também. Ou seja, aquilo que nós fazemos tem que ter um impacto positivo para a comunidade”, lembra o filósofo Renato Nogueira, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro). “Na filosofia ubuntu, o valor individual de um ser humano é medido pelo impacto coletivo que ele causa na sociedade”. “Se quer ir rápido, vá sozinho.
Se quer ir longe, vá em grupo”. Esse antigo provébio africano traduz muito do que a ética ou filosofia ubuntu fala sobre o que é viver em comunidade. “Ubuntu é uma ideia que se fundamenta na visão de mundo de alguns dos diversos povos bantu que entendem que a existência das pessoas, e de tudo o que existe no mundo, se dá de maneira totalmente interconectada e interdependente”, afirma o filósofo Wanderson Flor do Nascimento, professor do curso de Pós-Graduação em Bioética do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UNB). “Assim, a ideia de comunidade é bastante diferente daquela que conhecemos no ocidente como sendo um conjunto de indivíduos que vivem juntos ou se relacionam por alguma razão específica”.
Segundo Wanderson Flor, a comunidade para diversos povos tradicionais africanos é uma unidade fundamental que confere identidade e sentido às pessoas que nela vivem, já viveram e ainda viverão – de modo que a própria ideia de indivíduo ou de um “eu” fica bastante distanciada dos modos que entendemos no ocidente. “É preciso levar em consideração qual vai ser o impacto de uma ação agora para aquilo que virá”, explica o pesquisador Renato Noguera. “A noção de interdependência da filosofia ubuntu entende que as gerações futuras, o legado que nós ganhamos de outras gerações e as pessoas que vivem no mesmo tempo histórico que nós são interdependentes das nossas ações. Ou seja, ninguém se produz só, nenhuma comunidade se sustenta sozinha, sem talvez, se relacionar com outras comunidades”.
Expressões como “acordo”, “consenso” e “coesão” são considerados elementos-chaves para as atividades de grupos políticos que se inspiram na filosofia ubuntu. “Elegemos a filosofia ubuntu como uma de nossas raízes, por decisão política e compromisso com a construção de um pensamento que rompe com a lógica ocidental, de sujeito autocentrado e individualismo exacerbado”, diz o manifesto oficial do Movimento Cidadanista RAiZ, grupo político criado no Brasil em 2015 inspirado em organizações políticas experimentadas na Europa, como PODEMOS, SYRIZA e LIVRE.
Os repertórios comuns da sociedade são resolutivos mas não são suficientes. Para se ter um novo modelo social, é preciso uma sociedade mais interessante, mais harmônica onde se consiga gerenciar melhor os conflitos”, afirma Renato Noguera. “O papel da comunidade política é a capacidade de articular esses interesses em prol da comunidade comum. Na ética ubuntu, a democracia é vista não como a ditadura da maioria, mas como contínua inserção de direitos”, conta Paulino de Jesus. Para ele, o modo de pensa ubuntu ajuda a sociedade na medida em que parte do pressuposto de que ela precisa reconhecer que é desigual. “No momento que a sociedade reconhece que é um produto dessas desigualdades, ela tem o compromisso de propor o enfrentamento dessas desigualdades por meio de programas de ações afirmativas”.
OS OUTROS
“Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para outros, apoia os outros, não se sente ameaçada quando outros são capazes e bons, baseada em uma autoconfiança que vem do conhecimento que ele ou ela pertence a algo maior e é diminuída quando os outros são humilhados ou diminuídos, quando os outros são torturados ou oprimidos”. Trecho do livro, “No Future Without Forgiveness” (em português: “Sem Perdão Não Há Futuro”), de Desmond Tutu…
UM CONCEITO A SERVIÇO DA TECNOLOGIA E DA ADMINISTRAÇÃO
O universo da computação também se apropria de parte da filosofia ubuntu, a partir da década de 1970, com o movimento pelo software livre, realizado por professores de universidades norte-americanas. “Existe uma liberdade central em fazer, copiar, distribuir, executar e melhorar o software. Ou seja: o software livre precisa respeitar a liberdade da comunidade que o compõe”, explica Ivan Oliveira, presidente do conselho de administração do Instituto de Tecnologia da Informação e Comunicação- ITIC, organização não-governamental voltada para disseminação do software livre no Brasil. Segundo ele, esses programas de computador possuem uma curva de inovações muito rápida que os chamados sistemas proprietários, que são pagos. “Enquanto uma única empresa cuida da melhoria de um programa, um software livre não só é gratuito como possui toda uma comunidade disposta a melhorá-lo e distribuir essas melhorias”, diz. Um exemplo de software livre é o Ubuntu, criado em 2004 para ser um sistema operacional, programa que faz o computador funcionar, hoje com uma comunidade formada por cerca de 25 milhões de pessoas.
Além da computação e da política, outras áreas do conhecimento tem utilizado elementos da filosofia ubuntu, como a administração. Esse crescimento é visto com certo ceticismo pelo pesquisador Wanderson Flor. “A tarefa laboral, segundo os princípios ubuntu, está longe de ser uma aplicação de técnicas sobre a natureza que visa produzir meios de subsistência de um lado e acumulação de outro”, revela. “O continente africano continua sendo usurpado e suas riquezas, e nesse caso a riqueza intelectual, são utilizadas para fins que não se relacionam com os sentidos dados originalmente pelos povos desse continente a suas próprias ideias”. Por outro lado, a emergência da filosofia ubuntu surge num momento histórico em que a humanidade experiência o lado negativo da modernidade. “Em um mundo que vê de modo positivo a competitividade, que muitas vezes toma a forma não apenas da competição, mas também como a tendência a despotencializar o adversário, estratégias de colaboração e solidariedade aparecem como modos de buscar uma convivência mais harmoniosa e menos destrutiva”.